Páginas

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A VOZ DO DETRATOR


O mundo literário está repleto de ironias. O jornalista José Nêumanne Pinto, que assina uma coluna televisiva − no Jornal do SBT – chamada Direto ao assunto, provavelmente sonha com o título de romancista mais enfadonho da literatura brasileira. Para comprovar o quanto o ilustre e (i)lustradíssimo escritor está cortejando esse galardão convém (não) ler O silêncio do delator, romance que ganhou, em 2005, o prêmio Senador José Erminio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras, como melhor livro publicado no ano anterior.

Interminável e repetitivo calhamaço de 541 páginas, abusando da enxúndia, a narrativa almeja o status de pièce de resistance do humor barroco, maneirismo que parece não ter muita graça, sem ser necessariamente desgraçado. O que estraga o projeto é a falta de talento e elegância estilística do escritor – que está a centenas de quilômetros de distância de Guillermo Cabrera Infante, o grande­mestre do gênero. Infelizmente, esse fato elementar não constituiu impedimento (como sói acontecer com todos aqueles que se imaginam tocados pela varinha de condão da genialidade literária) para recusar o imitar dos arabescos que iluminam essa "pequena" transgressão, a apropriação do estilo alheio como justificativa na luta inglória contra a vulgaridade iletrada que ameaça tomar de assalto a cultura a­-pós-­o-moderno.

Racismos, preconceitos e malogros à parte, o cartapácio escrito pelo autor de outro romance ruim, Veneno na veia, além de outras publicações dignas de menozprezo, está intimamente ligado ao desatino desafinado que constitui o inventário de uma geração perdida no deserto da política repressiva (ainda não extirpada totalmente na contemporaneidade) que serviu de trilha sonora para os doces e bárbaros anos 60 no século XX. Exercício literário datado, desses que congelam o tempo e o espaço, o texto acrescenta outras cores pálidas à narrativa quando centraliza os holofotes em um grupo de amigos, todos abestalhados pelo romantismo mela-­cueca do roquinho "transgressor" dos Beatles ou das canções pseudo­intelectuais de Bob Dylan. Turbinados pelas folias de cama, mesa e banho, amansados pelos cigarros de maconha, discutindo filosofia, cinema e literatura, todos acumularam monumentais dores-­de-­corno. Nas horas de folga, alguns desses lonely hearts foram perseguidos pelos cassetetes dos meganhas, precisaram fugir das bombas de gás lacrimogêneo, amargaram o horror prisional. A soma dessas imagens resulta em inesquecível chatice, ninguém possui paciência de profeta bíblico para suportar o edulcorar do sempiterno discursinho medíocre, a lata de querosene Jacaré servindo de púlpito. Salvo masoquistas e similares, a vontade do leitor é a de fechar o livro e fugir rápido dessa tortura.

Para quem gosta (e há quem goste!), em qualquer página do romance há miríades de citações, erudição despropositada, desproporcional, irracional, a granel. Quiet desesperation, diria Thoreau. Ou Franz Paulo Trannin Heilborn. De qualquer forma, tamanha glutonaria resulta em tsunami intelectual, em patrolar os incautos e ignorantes. No intervalo, entre a ira dos caval(h)eiros do a-pós­-calipso e o acumular de ressentimentos, há o procurar pelo Aleph no buraco na escada, há a pretensão maior, muito maior, de assumir a identidade do poço onde reside a sabedoria. Ao perceber que esse pesadelo não vai se concretizar, resta ao leitor o encontro com versão mirrada (minada, mimada) de Bouvard et Pècuchet. Tristes tropiques, lembra Claude Levy­-Strauss ou Gilberto Freyre, não importa qual, visto que não há diferença entre este ou aquele, tamanha é a voracidade enciclopédica do enredo de escola de samba suburbana com pretensões pequeno-burguesas que emoldura essa usina de reciclagem que recebeu o rótulo de O silêncio do delator. Como a revolução se faz no porão, a política se negocia no salão, o romance aproveita a oportunidade e ministra lições (incompletas, parciais) sobre a Revolução Russa (1917), a Revolução Cubana (1959) e o golpe militar brasileiro (1964). Atordoador é adjetivo menor, diante de tamanha grandiosidade histórica (ou será histérica?).

Nos interstícios desse samba do crioulo doido, a narrativa mistura Albert Camus e Albert Finney com a primeira Epístola aos Coríntios, Wall Street com Muro de Berlim, entre tantas outras manifestações gratuitas de cultura inútil – dessas que, na melhor das hipóteses, somente servem para ajudar na solução de palavras cruzadas. Tudo conversa mole, biombo a esconder o exercício despudorado da fofoca grosseira, do devassar a vida do outro, expondo fraquezas, vícios e paixões mal resolvidas. Como quem não quer nada e sonha ficar com tudo, o narrador se diverte colorindo o texto com informações de suma importância: fazer crochê é terapia para Milan Kundera?, será que Lou Reed foi amante de Andy Warhol?, António Lobo Antunes não aprecia as descrições sexuais na literatura, foi no Deux Magots que a amizade entre Camus e Sartre se rompeu. Misericórdia!, implora a vítima, digo, o leitor, ao ver o horror escondido atrás do cenário da Ilha de Taras (versão hard).

João Miguel, o protagonista de O silêncio do delator, gastou a vida na cansativa tarefa de carregar o máximo possível de mulheres para o tálamo (alcova, cama, leito, quarto de dormir, câmara privada). No início do romance, escorado nas concessões típicas do pacto ficcional, ele se apresenta como cadáver, mortinho da silva, próximo do momento em que irá comer capim pela raiz, os amigos e inimigos rondando o velório, rodando a bolsinha, alimentando o passado perdido, assistindo ao formidável enterro da última quimera. O romance é, guardada as devidas proporções, o Te Deum que ele merece. Para o leitor que conhece as fontes de onde saíram tamanho disparate, difícil esconder o constrangimento.

Estratagema literário arriscado, desses que muitas vezes acabam dando com os burros n’água, porque nem sempre se mostra convincente, o "plot" do romance tempera a gororoba com o verniz retentivo de Machado de Assis e a malemolência picaresca de Jorge Amado. Em outras palavras, mistura Brás Cubas e Quincas Berro d’Água, combinação perfeita, homogênea, união de água e azeite. E o resultado desse experimento alquímico? Desastre? Não, claro que não, imagine só se isso é possível, claro que não! No entanto, para que o horror não marque presença na sala de jantar, na ânsia de obter um mínimo de verossimilhança, o defunto reparte o show com um comparsa na mímese tolinha do diálogo socrático: o narrador. Walter Ego de João Miguel, o narrador toma conta do campinho e, de posse da bola e do jogo de camisas, determina quem está do lado de quem. Intervencionista e intrometido (dono de régua e compasso, não deixa escapar as oportunidades de organizar os passos e as regras narrativas), seu trabalho consiste em dar voz a alguém, calar aqueles que podem estragar a festinha; esconder isso e aquilo; gritar ao megafone sobre outras coisas; enfim, manipular o espetáculo. Para que isso ocorra sem muito prejuízo e razoável eficiência, acrescenta uma cereja no topo do bolo: o texto foi esquartejado em fragmentos, emulando (suprema honra!) os folhetins machadianos da fase realista.

É isso, o romance é uma fraude do início ao fim. E não esconde esse propósito. Aliás, o alardeia. Incomparável master piece, O silêncio do delator foi escrito para que seus defeitos (ou qualidades) estejam vinculados com o leitor "ideal" − aquele que, do alto do saber crepuscular, consegue decifrar todos os códigos enterrados no amontoado de papel encadernado.

Seguindo os pedaços de pão espalhados no chão por Joãozinho e Maria, o leitor, ao constatar que não existe pecado ao sul do Equador ou ao norte de Pasárgada, acaba preso na casinha de doces, armadilha preparada pela bruxa má, digo, por uma espécie de Ariadne em dia de TPM. Através de pistas falsas, farsas, pantomimas, comédias, operetas e tragédias, a narrativa induz caminhos, propõe momentos em que perde a direção, o sentido, os sentidos, puro delírio ao ver o corpo estendido no esquife, memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris, subverte a imaginação sem poupar recursos em língua morta (a te fazer companhia, João Miguel!). No universo dos arrivistas, essa tática cultural é chic, très chic, supimpa mermão!

Desabalada balada de trovador provençal (desses que eram enforcados na primeira árvore à esquerda de quem sai de Paris) ou retrato desbotado de época, a saga vai se repetindo no desfilar trânsfuga que festeja. Relato da desumanidade operada pelas lembranças que escoaram (ecoaram) pela ampulheta, a escritura oferecida por Nêumanne Pinto jamais chegará a galo, cocoricós a testemunhar a punheta que não se completa, incompleta pela flacidez produzida pelo pedantismo barato que une na mesma tocata, por exemplo, inúmeros personagens da mitologia grega, Penélope e Helena (de Tróia) na proa de um veleiro destinado ao naufrágio. Comentários demi bombé acompanham esse momento de constrangimento erétil. Bocejar é inevitável, principalmente se mínima sombra do texto-referência passar ao largo − comparando a cópia com o original, o verdadeiro com a imitação.

Claro, tudo isso veste a máscara do engraçado, engraxado pelos trocadalhos pra carilho que fazem a festa semântica consagrada pelo co(r)po e vinho que constituem o texto. Mas, comprovando o que a filosofia sempre discutiu, não basta querer abria a caixa (em lugares mais honestos, a boceta) de Pandora para que o humor monte banca e cartório, exigindo gargalhadas e aplausos. Somente a Literatura, com inicial capitular, pode acreditar nessa possibilidade; somente o texto comprometido com algo mais é que não capitula diante da vontade de realizar essa proeza. O romance escrito por Nêumanne Pinto não se enquadra nessas categorias. Como ensinam os clássicos imemoriais: muitos são os chamados e poucos os escolhidos.

Enfim, para resumir toda essa bagunça, as múltiplas vozes que o leitor escruta em O silêncio do delator (um oximoro prêt­-à-porter) se confundem com a voz do detrator, com a voz maledicente, difamatória, incorrigivelmente movida pela mágoa de ter passado em brancas nuvens enquanto a vida fervilhava.

Tendo como base um fragmento de Arquíloco, A raposa conhece muitas coisas, mas o ouriço conhece uma única grande coisa, é possível afirmar que José Nêumanne Pinto esbanja conhecimento, mas lhe falta o plus que faz a diferença. Espinhos, talvez.


Um comentário:

  1. Excelente crítica. Me deu vontade de ler O silêncio do delator. Obrigado, Raul.

    ResponderExcluir