Páginas

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O MEDO DO ESCRITOR NA HORA DO PÊNALTI (FUTEBOL E LITERATURA)


Falta um “passe de letra” na literatura brasileira. Por alguma razão muito peculiar, difícil de ser explicada, raros são os livros de ficção sobre o futebol. Talvez seja porque as deficiências da arte de contar uma boa história se mostram ainda maiores quando o assunto é de domínio público, terreno onde todos dizem conhecer como se fosse um integrante da família, talvez seja apenas o bom e velho preconceito de abordar um tema popular.

Além disso, há as questões psicológicas: muitos escritores sonham com a fama, com dinheiro e com uma vida luxuosa que somente é possível nas miragens produzidas pelo mundo ficcional. Simultaneamente, por uma desses medos que somente 20 anos de psicanálise conseguem explicar, as análises políticas causam urticária nos escritores brasileiros. Talvez esteja ai o “x” da questão: futebol e política são companheiros de viagem, o “ópio do povo” ainda é capaz de causar estragos naquele mundinho Poliana moça que foi idealizado pelos setores mais conservadores da nossa sociedade. Desta forma, certos temas (futebol, carnaval, repressão política) são relegados a um segundo plano, como se fossem “menores” ou então destinados aos que não possuem imaginação. Quem procurar por bibliografia ficcional sobre essas questões vai ter que se contentar com migalhas.

No caso do futebol, em uma espécie de compensação para o medo, as prateleiras das livrarias estão cheias de periféricos: biografias de jogadores, histórias dos clubes e alguns ensaios sociológicos sobre o tema.

A coletânea 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa, é uma honrosa exceção nesse 0 x 0 de criatividade. Exemplo clássico daquele tipo de criatura que nasceu anoréxica e, com o passar do tempo, foi adquirindo massa muscular (como um desses jogadores de clube grande: no café da manhã, toddy e esteróide), a última versão de um livro que já teve várias edições e nomes, contém vários gols de placa, digo, textos antológicos sobre o assunto: Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro, Marcos Rey, Edilberto Coutinho, entre outros craques. Infelizmente, como em qualquer seleção, a lista daqueles que não foram convocados induz o torcedor (no caso, o leitor) a acreditar que o desempenho do time poderia ser melhor – e o interessantíssimo Flamengo, de Jeferson Ribeiro de Andrade, é uma das ausências mais expressivas.

Comprovando que futebol também é assunto de menina, a jornalista Clara Arreguy não teve medo e aceitou bater uma bolinha com a rapaziada. Seu divertido romance Segunda divisão deveria ser eternizado no DVD dos grandes momentos do bravo esporte bretão, digo, da literatura sobre futebol. Escrito em uma linguagem acessível para qualquer pessoa que tenha interesse no tema ou na literatura, Segunda divisão brinca com os aspectos mais caricatos do tema, ciente de que as figurinhas carimbadas do espetáculo (jogador, cartola e torcedor) constituem o filão da mina. Em alguns trechos, o romance lembra (ao longe) o primeiro Boleiros, belíssimo filme do Ugo Giorgetti.

De alguma forma, para o bem ou para o mal, um romance que está centrado na partida final da segunda divisão do campeonato brasileiro, e o seu entorno, comprova uma das frases ditas por um dos personagens do filme Invictus: Rugby é um esporte de bárbaros, jogado por cavalheiros. Futebol é um esporte de cavalheiros, jogado por bárbaros. Nesse sentido, a paixão nacional (que ecoa o fascismo das torcidas organizadas) é sempre lembrada como um fator atenuante, como uma desculpa, para algumas práticas comportamentais – como ficou comprovado em diversos episódios recentes, destaque ao horror que envolveu o goleiro Bruno (Flamengo); como comprovam alguns belos momentos da vida pregressa de jogadores “exemplares”: Edmundo, Adriano, Eder, Neto, Casagrande, Wagner Love e tantos outros.

Em outro tom de voz, um bom momento literário da combinação literatura de ficção e futebol está no romance O paraíso é bem bacana. Ao narrar um período da vida de um jogador brasileiro (negro, semi-analfabeto, convertido ao islamismo e, esse é um complicador importante, obcecado por sexo), que está preso a uma cama de hospital em Berlim, André Sant’Anna quase consegui colocar a bola lá onde a coruja dorme. Quase. De qualquer maneira, esse romance consegue captar algumas nuanças esportivas particularmente interessantes.

Apesar de parte da torcida (a mais intelectualizada) protestar de forma veemente, o romance de André Sant’Anna foi flagrado em impedimento. No Brasil, onde o índice de leitura é pequeno, 451 páginas assustam muita gente. Além disso, como se não bastasse, há um agravante significativo: a linguagem. Sant’Anna ambiciona ser uma espécie minúscula de James Joyce tupiniquim. Então, fiel ao estilo que o consagrou em outros livros, salpicou o seu romance com vários monólogos interiores, repetições estilísticas, parágrafos editados em bloco maciço e – paradoxo dos paradoxos! – diálogos que mimetizam a linguagem chula, menos instruída do jogador de futebol. O leitor comum vê aquilo e prefere abandonar o estádio, digo, o livro.

No primeiro parágrafo deste texto, afirmei que faltava um “passe de letra” na literatura brasileira. Menti. O conjunto de crônicas de Flávio Carneiro, Passe de Letra, é um passeio sentimental por um tempo que só existe/resiste na memória. Equilibrando-se na corda tênue que divide as lembranças e a invenção, Flávio Carneiro dribla os adversários, descobre espaços para avançar e, como sói acontecer em partidas reais, faz alguns gols. Não é pouco.

Somando tudo, resta-nos a triste constatação de que misturar futebol e literatura não dá samba – nem goleada. Falta ao escritor brasileiro, e aos seus personagens, aquele jeito moleque dos “meninos da Vila”, a ambição de ultrapassar o marcador, uma pedalada, um lençol, um faz que vai mas não vai, pode ir sozinho, o meu caminho é outro, o ideal, bobão, é você ficar olhando o espetáculo, o meu nome é alegria e, como dizia Garrincha, o teu é João.

Enfim, o velho Nelson Rodrigues é quem tinha razão: não há um único e escasso personagem de romance, neste País, que saiba cobrar um escanteio.



2 comentários:

  1. André Sant’Anna escreve para quem gosta de literatura, e observa essa tradição. A tradição do boleiro é outra. Não que sejam excludentes, mas fazer GOL em literatura é não fazer concessões. Abraço, Raul.

    ResponderExcluir
  2. Rafael: Há gols e gols. André Sant'Anna é, quando muito, um esforçado publicitário que finge escrever como vanguarda, mas que no fundo não passa de um perna-de-pau.

    ResponderExcluir