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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

NÃO QUERO MAIS SABER DO REALISMO QUE NÃO É LIBERTAÇÃO


Apesar das tapeações contemporâneas e/ou dessa coisa amorfa que é o a-pós-o-moderno, o realismo ainda está vivo. Sim, o bom e velho realismo, com os seus melhores vícios e virtudes, ainda consegue enganar muita gente fabricando contextos, descrevendo em grandes detalhes da terra devastada, aplicando todas as suas forças em enredos cheios de ausências (sim, ausências de ternurinhas familiares, ausências de amores/dores, ausências de estímulo para aqueles que estão em conflitos, ausências de histórias que terminam em sucesso profissional), como que a dizer o que não diz, sabedor de que não pode estar onde jamais esteve, mas, como sempre, como é de costume entre criminosos, deixa pistas, provas esquecidas na local do crime, evidências de que algo não está a ocorrer com a adequada dinâmica.

Enfim, não mais é possível negar o óbvio: o realismo ainda está ditando moda nas passarelas brazucas (entre as múltiplas e siliconadas Fashions Weeks e as private partys em Paraty Beach, uma chusma de pedintes, todos na busca de um autógrafo redentor, prova inequívoca do eu estive lá).

Driblando as puxadas de tapete que a vida presenteia aos incautos e o esforço sobrenatural de alguns coveiros (que gozam – literalmente – ao manipular pás e enxadas do politicamente correto, do feminismo militante e dos livros de colorir prêt-à-porter), o gênero mais nocivo (há quem discorde, fazer o que?) da literatura brasileira conseguiu resistir bravamente ao seu destino histórico (a lata de lixo) e (feito uma fênix extemporânea ou um zumbi gótico) nunca deixou de induzir a crença de que nosso acesso ao real e à realidade somente se processa por meio de representações, narrativas e imagens, como afirma, catedrática, parecendo séria, Beatriz Jaguaribe.

Foi nos tempos em que Machado de Assis sonhava escrever com o mesmo estilo e qualidade dos ingleses e franceses que o realismo (auxiliado por seu primo enfermiço, o naturalismo) aportou em solo brasileiro, mala na mão, olhos cheios de esperança e a vontade de viver os novos tempos. Como um imigrante ingênuo, desses que acreditam na felicidade ou no Papai Noel, ele veio para ficar. Ficou. Fincou estandarte no Pico da Neblina, aproveitando o fog tropical e as chuvas que, pela graça divina de Tupã, são espargidas sobre a terra em que se plantando tudo dá. Fez mais: siderado pelas explosões de magnésio, posou para a fotografia que, logo depois, com moldura vagabunda, foi pendurada na parede da sala, ao lado do calendário com a imagem do sangrento Sagrado Coração de Jesus. Abençoado pelo sincretismo religioso e pela amarga, digo, doce constatação de que não existe pecado ao sul do Equador, o realismo-naturalismo foi desbravando território, engravidando nativas e fugindo da responsabilidade de prover os bastardinhos que foram nascendo ao largo (felizmente, muitas vezes estreito) caminho que leva ao prazer total, digo, tropical. Como sói acontecer em terras brasilis, a (ir)real Academia Brasileira de Letras o aceitou como manifestação legítima da literatura nacional.

Depois de algum tempo, por diversos motivos, nenhum particularmente importante, o realismo quase foi retirado de cena. Resistiu através de um de seus sucessores, o chamado realismo socialista, que era de uma chatice espetacular. Mesmo assim, ao longo da aventura, houveram picos de audiência, basta lembrar, entre tantos exemplos, o ciclo nordestino (em que a descrição emocional, fundamentada nas diferenças sociais, políticas e econômicas, fez o país chorar uma Foz do Iguaçu de culpa e sofrimento). Na mesma época, o menos amado dos jorges, quando não estava deitado na rede, vítima de alguma recaída de romantismo tardio (por exemplo, sonhando que era ele, Jorge, e não Nacif, quem estava dormindo com Gabriela), escreveu algumas narrativas interessantes (Cacau, Suor, Capitães da Areia).

O chamado realismo mágico, que é super mágico e pouco realista, fez menos sucesso. Enquanto o mundo era varrido pelo boom lat(r)ino-americano, no Brasil somente o Murilo Rubião e o José J. Veiga conseguiram extrair ouro desse filão. As outras tentativas foram pífias, escoradas no propósito de criar cortinas de fumaça, o velho esquema de fugir da responsabilidade na denúncia ou na sátira, por isso usaram e abusaram, se lambuzaram com metáforas, metonímias, eufemismos, elipses, fábulas e outras variações, o usual nessas circunstâncias, sabe como é que é, falar daquilo mas escrevendo o contrário, e todos foram infelizes para sempre.

Foi lá pelos anos 60 do século XX que o Rubem Fonseca (ironicamente, um egresso das forças policiais que oprimiram o país depois da quartelada de meia-quatro) forneceu um up grade no panorama. Talvez cansado da inércia daqueles que não gritavam ah... que preguiça! por preguiça, talvez para impor a presença concentrada de todas as ausências de que ainda hoje se ressente a literatura brasileira, talvez aproveitando o momento histórico para dar um golpe (mais um!) literário, Rubem Fonseca encontrou a fórmula mágica, garantia de sucesso imediato, milhares de exemplares vendidos em segundos, uma máquina de fazer dinheiro. Bastou fingir que a violência urbana era o seu Santo Graal, o tema maior de uma vida, a oportunidade de colocar o preto no branco, o branco no preto, a suruba racista/fascista/positivista que todos nós compartilhamos e negamos (pelo menos, em público). Centrado nas classes baixa ou média baixa (como que a dizer que os ricos estão imunes a esses desvios de comportamento) e mostrando as maravilhas dos aparelhos repressores do Estado (um eufemismo educado para o exercício diário da truculência da polícia, esse braço incansável da Lei!), Rubem Fonseca retrata, em contos e romances (em que se misturam o mais abjeto dos moralismos provincianos com espo[r]rádicas descrições gráficas de sexo), as anomalias humanas, as promiscuidades portáteis e os sado-masoquismos compensatórios (despidos de qualquer roupa ou análise sócio-política). Todos esses excelentes artigos de consumo passaram a ser servidos no sempre interessante embrulho da linguagem coloquial, cheia de palavrões, mediocridades e carências.

Para alguns “chutadores”, perdão, “especialistas”, essas cenas e diálogos (que antecipam um provável roteiro cinematográfico) das personagens de Rubem Fonseca apenas tornam público o que nós, os leitores, dizemos e sentimos diariamente na intimidade. Pura bobagem, baseada na conversa “pra-boi-dormir” de que a prosa precisa ser verossímil, crível, plausível, momento em que todos se reconhecem como seres humanos ou como personagens.

Comprovando mais uma epidemia da síndrome me engana que eu gosto, professores universitários, jornalistas, leitores e lacaios diversos se curvaram ao estupro intelectual, ignorando uma outra lição da Beatriz Jaguaribe: o paradoxo do realismo consiste em inventar ficções que parecem realidades.

Na mesma direção, e sempre guiados pela necessidade de integrar o país através da literatura, algumas almas bem-intencionadas, porém sem muito talento, usaram a receita de bolo fornecida por Rubem Fonseca e começaram a dar voz aos despossuídos, aos humildes, aos marginalizados pelo sistema (e, portanto, sem assistência ou proteção social), aquela coisa judaíco-cristã-ocidental da responsabilidade social com o sal da terra. O que ocorreu então foi uma epidemia de narrativas comprometidas com “a causa”, embora poucos soubessem determinar o que era “a causa” – e a sua legitimidade.

Em outras palavras: a mistura de ideais políticos de quinta categoria com ingenuidade literária resultou em um estrago monumental. Nos anos seguintes, a literatura nacional foi invadida por centenas, ou melhor, milhares de romances em que o histerismo semi-analfabeto faz parceria de sucesso com sangue e porrada na madrugada (nos versos imortais de Bernardo Vilhena). Além disso, essa literatura, se é que podemos chamá-la assim, conseguiu (de forma muito competente, é necessário observar e elogiar) amalgamar muitos sentimentos e ações nobres (desrespeito à vida, misoginia, homofobia, além de saudável culto aos carros e às armas). Freud explica.

Rubem Fonseca, eleito o santo protetor do realismo nacional, tornou-se um ponto de referência, o divisor de águas, o maior de todos, o fodão. E esses elogios sempre estão destacados nas orelhas dos livros, nas contracapas ou nas resenhas fáceis que as revistas semanais publicam para encantar os olhos dos leitores fáceis. Ou seja, a razão capitalista (que sempre está a espreita de uma oportunidade para faturar) aproveitou o momento favorável e garantiu uns trocados com um grupo de escritores da menor qualidade: Patrícia Melo, Paulo Lins, Ferréz, Luis Alfredo Garcia-Roza, Joaquim Nogueira, Nelson Motta, Jô Soares, Tony Bellotto (para citar os mais óbvios, aqueles que, de uma forma ou de outra, um pouco mais um pouco menos, prestam vassalagem, digo, tributo ao estilo comercial criado pelo Mestre).

Pois é, então ficaremos nesse cenário desgraçado (literal e literariamente: sem a menor graça), como se o mundo estivesse em crise ou às avessas, condenados a beber o veneno que o “mercado” fornece como se fosse remédio? NÃO! Não, senhor! Um punhado de escritores, dispensando a usual requisição em momentos de crise, isto é, o surgimento de um “salvador da pátria” (talvez um novo Pedro de Alcântara, nossa versão tragicômica de Dom Sebastião, aquele mesmo que desapareceu em Alcácer Quibir), está reagindo contra esses parasitas da literatura.

É possível (sem a menor sombra de arrependimento!) afirmar que ainda há vida inteligente no realismo brasileiro. Sim, temos escritores fantásticos e livros de boa qualidade! Entre alguns nomes e textos (há outros, muitos outros!) que, contemporaneamente, desafinam o coro dos contentes, seja porque trabalham com uma outra estética realista, seja porque se opõem a tudo que não seja libertação: Luiz Ruffato (Eles eram muitos cavalos), Francisco Dantas (Coivara da memória, Os desvalidos), Zulmira Ribeiro Tavares (O nome do bispo, Jóias de família), Ronaldo Correia de Brito (Faca, Livro dos homens, Galiléia), Milton Hatoum (Relato de um certo Oriente, Dois irmãos), Ivana Arruda Leite (Falo de mulher, Ao homem que não me quis), Bernardo Carvalho (Nove noites, Mongólia, O filho da mãe), Marçal Aquino (Faroestes, O amor e outros objetos pontiagudos), Nelson de Oliveira (Naquela época tínhamos um gato, A maldição do macho), João Anzanello Carrascoza (Duas tardes), Antonio Carlos Viana (O meio do mundo, Aberto está o inferno).



O bom leitor é aquele que lê além do que está posto diante de seu olhar. E o realismo precisa desses leitores para separar a “qualidade literária” (seja lá o que isto for!) dos livros de auto-ajuda, dos besta-selleres pasteurizados e do exercício das vaidades dos escritores medíocres.

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