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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

VÊS! NINGUÉM ASSISTIU AO FORMIDÁVEL ENTERRO DE TUA ÚLTIMA QUIMERA

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Embora a certidão de óbito ainda não esteja disponível para download na Internet, circulam (on-line and off-line) boatos sobre a morte da poesia. Chamadas para investigar o caso, as autoridades (in)competentes (alegando necessidade profissional de perder tempo com outras tarefas) tornaram público, em nota oficial, que não farão declarações sobre o assunto. O mesmo procedimento administrativo foi adotado pelo Instituto de Medicina Legal: o cadáver ainda não foi encontrado, não é possível atestar a causa mortis.

Independente dos irresponsáveis por essa espetacular mentira, também chamada nas mesas de bares, restaurantes e similares de “a” verdade, a tragédia anunciada se cumpriu, basta abrir os olhos e ver: a poesia foi comer capim pela raiz. Artigos em jornais e revistas jamais alterarão a triste realidade – também não impedirão oportunistas de decretar luto oficial por três dias ou um minuto de silêncio antes do início de jogos de futebol. Órfãos e carpideiras, munidos de coragem, poemas e solidariedade, pronunciarão épicos discursos em saraus emotivos, sabedores de que a poesia cumpriu com a sua missão na Terra – não adianta choro nem vela, a poesia bateu com as botas.

Não é brincadeira: a poesia está versejando em outras paragens, em outras pastagens. Com o rosto oscilando entre a sisudez e a gargalhada, em razão do mundo litero-alcoólico em que habitamos estar repleto de burros e capim, não é possível deixar de constatar o óbvio, o inequívoco, o reles e o comum: a poesia se transformou em banquete dos vermes.

Inutensílios a ocupar o espaço do home teather, todos os livros de poesia estão sendo despejados das estantes e, hoje ou amanhã, compartilharão a vala comum com as novas bugigangas tecnológicas (e-book, Kindle, Sony Reader – além de milhares de gadget similares, destinadas a distraírem as “crianças”).

Vendidos como papel para reciclagem, Estrela da vida inteira e Claro enigma terão o mesmo destino dos escritos de João Cabral de Melo Neto, Francisco Alvim e Gonçalves Dias. Quase nos fundos da sala, abandonado sobre uma mesa, um exemplar de Poesia Reunida, de Orides Fontela, aguarda que o destino se cumpra.

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Nessa área pastosa que os teóricos chamam de a-pós-o-moderno, quem é o leitor de poesia? Eu não sou! Faz séculos que não compro poesia. De vez em quando me pego folheando velhas antologias, livros maltratados pelo tempo e pelas minhas mãos. No embalo lírico, vou lembrando oportunidades tolas em que tentei dentro da tua orelha fria / dizer segredos / de liqüidificador, Vinícius de Moraes era tiro-e-queda quando se estava de olho em alguma namorada em potencial. Mais tarde, com as mesmas más intenções, o caminho das pedras era decorar Adélia Prado e, entre um gole de vinho (sim, o padrão das alucinações também tinha melhorado) e o declamar de verso “na medida”, o mundo parecia ser um imenso parque de diversões. Hoje, salvo as raras exceções que confirmam a regra, não compro nem mesmo aqueles livros artesanais, sínteses do encontro da necessidade com a beleza, vendidos de mão em mão, em mesas de botecos, no meio das ruas, o autor, travestido em cidadão de segunda (ou terceira) classe que não se alimenta a uma semana, e, sem jeito, implora por ajuda ou por prato de comida.

Meu amor, minha flor, minha menina / solidão não se cura com aspirina e você também não lê poesia! Não tente me enganar. Gosto disso não. Os versos vibram ao alcance do ouvido, no te olvides, basta prestar atenção, o ar entrando nos pulmões com suavidade, Tudo é uma questão de manter / A mente quieta / A espinha ereta / E o coração tranqüilo, dizia aquela velha canção que tocava no rádio, confundindo música e poesia, embora todo (o) mundo soubesse que Chico Buarque e Caetano Veloso eram de outra galáxia.

O olhar passeando pela estante, descobrindo a distância intelectual entre o conhecimento e os livros que não estão lá, recupera a frase-desculpa das livrarias: “não vende”, diz o funcionário. No trânsito, ninguém se importa em atropelar versos de pé quebrado. Nos corredores dos shoppings centers nunca encontrei um pentâmetro elegíaco. Na manicura, longas conversas sobre o último capitulo da novela e nenhuma epicédio. Será que, em nova imagem do corpo em decomposição, a poesia se opõe ao “mercado”?

Se não for muito complicado, gostaria de saber quem está consumindo (a, com a) poesia? Para quem escrevem os poetas?

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Não importa a opinião dos politicamente corretos (que, na falta de uma ação mais efetiva, tentam colocar culpa nos amantes dos livros de papel, enquanto fazendeiros, garimpeiros e especuladores derrubam e queimam milhares de hectares de florestas), a poesia perde parte da graça na tela do computador. Falta a possibilidade do contato táctil, olfativo e visual: abismos que abrigam a morte do pensamento, transformando a emoção em letras fosforescentes e mortas.

Outro dia, recebi mensagem eletrônica com parte dos versos praticados pelo Fabrício Carpinejar. Não me empolguei, me pareceu coisa de quem (naquela hora neutra da madrugada em que todos os segredos são revelados) gostaria de ficar rico escrevendo livros de auto-ajuda. Gosto do Antonio Cícero e do Fabrício Corsaletti – apesar de acreditar que ele escreve prosa melhor do que poesia (recomendo Golpe de ar). Gosto de um ou outro contemporâneo, mas tenho vontade de rasgar (ou, em bom português, deletar) todos aquelas bobagens sentimentais ou herméticas que os sem imaginação costumam chamar de poesia.


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Morta, a poesia não possui futuro. Aliás, nem no presente a poesia está presente. Somente o passado retém algumas informações sobre o poetar, esse verbo sem substância, sem sentido ou direção, um passo para a emoção, não importa se rimar tesão e coração for prova de falta de criatividade ou de inventividade. A poesia não tem utilidade – se tivesse, ah, se tivesse, estaria sendo vendida nas gôndolas dos supermercados, logo ali, ao lado da farinha, da massa de tomate, dos eletrodomésticos.

Cheio de nostalgia, lembro de outros tempos, a poesia não era preservada de participar da vida cotidiana, do meu, do teu, do nosso mal-estar/bem-estar. Era um altar onde todos se ajoelhavam e rezavam, os mistérios mais gozozos eram cultivados no jardim das delícias, frutos e frutas sumarentos, água na boca, o pecado ao alcance de um verso, sempre é mais gostoso quando desafiamos deus ou o perigo.

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Vês! Ninguém assistiu ao formidável / enterro de tua última quimera, afirma, envolta em chamas, a fênix, prevendo, de uma maneira muito pessoal, que – contra tudo, contra todos – a poesia ainda é ponto/ponta de resistência, forma pouco espessa/expressa de dizer não ou sim ou talvez ou manifestar sentimentos ou revelar a nudez do rei ou inventar amores, dores e lesões, suspiro diante do inefável ou, entre o sossego e a ansiedade, perguntar: Posso comparar-te a um dia de verão? (Shall I compare thee to a summer’s day?, Shakespeare, soneto XVIII). De alguma maneira, no lento escoar dos sons fracos e francos da (des)humanidade, com o mesmo de entusiasmo de Ana Cristina Cesar declarando que estou bonita que é um desperdício, chegará um alento, bandeira a ser hasteada no céu límpido: Assim eu quereria o meu último poema // Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais.

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