Páginas

terça-feira, 8 de novembro de 2011

MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE UM TEMPO POÉTICO QUE NÃO EXISTE MAIS


Nos anos 80, um povoado sub−desenvolvido no centro de Santa Catarina, Nossa Senhora dos Prazeres dos Certões e dos Campos das Lajens, era o equivalente a um parque de diversões. Faltava roda gigante, barraquinha de tiro ao alvo, algodão doce e maçã do amor. Sobrava poesia. Muita poesia. E como cada um se diverte como pode, havia uma enxurrada de versinhos rimando amor, dor e flor. Essa linguagem paupérrima entrou em oposição ao pensamento de três amigos, que propuseram outro andamento à brincadeira. Encharcados pelos ensinamentos de Ezra Pound, principalmente aqueles que estão no ABC da literatura, e pelos versos dispersos de Maiakovski, T. S. Eliot e Bertolt Brecht, além dos poetas concretos e da geração mimeógrafo, eles queriam promover uma revolução. Faltou fôlego. E valor de mercado. Ou seja, toda aquela energia não serviu sequer para pagar a conta do boteco (tantas vezes "pendurada" em intermináveis noites de discussões inúteis, sede e falência econômica). O movimento cultural na província era tão incompetente que a única esperança possível − naqueles tempos sombrios − era incomodar um pouco (não muito) os burgueses. Nada mais do que isso. Obviamente, esse objetivo raras vezes foi atingido.

Fernando Karl, Fábio Brüggemann e eu fazíamos de conta que éramos uma versão poética, ou melhor, patética dos três mosqueteiros. (D’Artagnan, sem a menor dúvida, era interpretado por Nereu de Lima Goss, nobre cavalheiro medieval que – entre tantas qualidades − nunca escreveu um verso ou nos ensinou algo realmente útil).

Dos três aprendizes, Fernando Karl era quem tinha mais experiência. Quando decidiu abandonar o norte do estado para residir no vilarejo, trouxe na bagagem a esposa e um livro publicado. Depois de alguns meses fingindo estudar agronomia, arrumou um emprego na Biblioteca Pública e saiu pelas ruas da aldeia procurando por gente doida o suficiente para gostar de poesia. Encontrou centenas de malucos. Infelizmente, todos do tipo errado. Mesmo assim, escravizou meia dúzia de aborígenes, vassalos que o seguiram fielmente durante muito tempo. O ponto alto dessa missão evangelizadora ocorreu em 1984, no momento em que − na Biblioteca Pública − ajudou a promover um espetacular concurso poético. Meia dúzia de gatos pingados colaborou para o sucesso do evento. Essa aventura teve como resultado um livro esquálido (relíquia de colecionador, atualmente). Um dia, depois de acumular cansaço e dívidas bancárias, Fernando arrumou as malas e sumiu em uma das curvas da rodovia que liga o mundo rural com o imundo litoral (a esposa já tinha desaparecido de cena há muito tempo!).

Fábio fazia o gênero inquieto. Queria ir embora logo. Não estava satisfeito com a falta de calor (em vários níveis) da cidade em que nasceu. Na primeira oportunidade, tomou o expresso Reunidas para a ilha dos casos e ocasos raros, sob pretexto de estudar Letras. Como todos aqueles que são apaixonados pela literatura, não resistiu à metodologia do ensino universitário e abandonou o barco antes do naufrágio psíquico. Abriu um sebo, fundou umas duas ou três editoras, promoveu diversas agitações culturais. Nos intervalos entre o necessário e o inútil, escreveu para jornais, publicou vários livros que não entusiasmaram (muito) o distinto público e abandonou a poesia. Ou por ela foi abandonado.

De minha parte, fiz de conta que não era comigo toda aquela agitação e fui ficando no lugarejo, talvez para poder assistir de camarote as novidades. Embora não tenha perdido o meu tempo, também não vi espetáculos grandiosos. Enquanto o desmundo fora dos limites do município se divertia em alegres versejares e namoros épicos, perdi o bom−senso e troquei juras de amor com a prosa. Pior, como um desses homens casados que se deixa encantar pelos truques sexuais da amante, me entreguei (sem a mínima vergonha) ao pecado das frases longas, dos discursos sem fim. Foi (ainda é) uma festa.

No ano da graça (ou da desgraça?) de 1984 aconteceu uma tragédia. Por algum destempero que ninguém nunca conseguiu explicar direito, a prefeitura patrocinou os nossos primeiros livros. Os de Fernando, Tema para romance, e Fábio, "Dançando na chuva, eram edições mais elaboradas, capas e miolo com alguma qualidade. O meu, Um abraço pra quem fica, tinha proposta mais alternativa: era um simulacro daqueles livretos que caracterizaram a geração mimeografo. Lembro que passei horas discutindo que fontes de letra−set (um recurso gráfico primitivo) deveriam ser usadas na capa. Quase tudo em vão. Na hora do "vamos ver" a decisão recaiu em um pincel atômico, as letras de forma cruzando o espaço como se fossem versos destinados à imortalidade. Apenas o meu nome foi impresso em fonte gráfica considerada normal. No miolo, os poemas foram dedografados em uma máquina de escrever da Secretaria Municipal de Educação. Outra particularidade: na companhia da Lúcia Branco, recortei, uma a uma, as capas – alguma alma bondosa havia doado uma bobina de papel Kraft para o Departamento de Cultura.

Os três livros queriam registrar contemporaneamente a síntese poética, o "achado", a pesquisa formal e a paixão adolescente, Ou seja, ambicionavam modificar o panorama literário do Planalto Catarinense. Era muita pretensão. O que realmente aconteceu foi muito mais prosaico. Tornaram−se imediato sucesso de vendas entre familiares e amigos. Bastava algum incauto aparecer por perto e a "facada" sangrava o bolso da vítima. O desespero gera forças pavorosas. E o desfilar das garrafas de cerveja em cima das mesas dos bares era o sempre necessário incentivo para que não houvesse perdão.

Alguns meses depois, cada um de nós tomou rumo diferente na vida. E embora tenhamos nos encontrado diversas vezes, salvo engano, em apenas poucas oportunidades estivemos os três juntos. A primeira vez foi por culpa do Fábio. Em 1987 ou 1988, ele publicou um pequeno artigo no jornal "A Notícia", de Joinville: O disperso grupo de 80 (aproveitem que ainda não fizeram 30). Esse artigo de alguma forma colocou nossos nomes no mapa da "nova" poesia catarinense. Com o tempo, aquele texto evoluiu, sofreu acréscimos e mudanças e resultou, em 1991, em um dos livros clássicos sobre a historiografia poética catarinense: 18 poetas catarinenses – a mais nova geração deles. Estamos todos lá, poemas e poetas, desfilando pelas páginas, alegres e faceiros.

A segunda vez que estivemos juntos foi em Joinville, em 2000, em um Encontro Catarinense de Escritores. Foi um evento interessante (Wally Salomão era um dos convidados). Nos poucos momentos em que os três estiveram juntos, a melhor parte foram os projetos que nunca se concretizaram. Na hora das proposições, parecia ser a salvação do mundo. No dia seguinte, sem lembrar o acordado (inclusive porque o bom era continuar dormindo), queríamos era mergulhar na perdição inconsequente. Outra coisa: em alguns momentos, o que prevalecia não era a conversa, era a discordância. No intervalo entre nossos desencontros, várias questões (estéticas, ideológicas) haviam mudado − e nem todas essas mudanças foram boas.

Por fim, a última vez que nos encontramos também foi por escrito. O jornal Ô Catarina (número 45, março e abril de 2001) publicou outra antologia: Contemporâneos (poetas catarinenses dos anos 80 e 90)". Desta vez a curadoria foi do Dennis Radünz.

Olhando para trás, visualizando esses fragmentos de minhas memórias sentimentais, percebo que não sobrou muito dos nossos dias heróicos de poesia. No máximo, um punhado de lembranças, diversos poemas quase ruins e algumas músicas que ninguém lembra mais (parcerias entre Fernando Karl e Beto Mondadori). Não é exatamente o grande prêmio da loteria. De qualquer maneira, foi divertido.



10 comentários:

  1. PERCEBO O MESMO AMIGO, NO MÁXIMO UM PUNHADO DE LEMBRANÇAS QUE FICARAM LARGADAS NUM CANTO NUM PEQUENO PAPEL AMARELADO E EM BRANCO, BJS AMIGO ADOREI SEU BLOG, E ESTOU TE SEGUINDO, VEM CONHECER OS MEUS 3 BLOGS E ME SEGUIR TBÉM SE FOR O CASO!!!

    ResponderExcluir
  2. A ESSÊNCIA DA ALMA: Obrigado pelo comentário, pela leitura e pelos beijos! Vou olhar teus blogs!

    ResponderExcluir
  3. ADOREI SUAS PALAVRAS E SE ME PERMITIR ESTAREI POSTANDO ALGUMAS DELAS EM MEU BLOG. APROVEITO PRA FAZER-TE O CONVITE PARA VISITAR MEU BLOG TB. SUCESSO!!! BJOKITAS. BETHA

    ResponderExcluir
  4. Roberta: disponha. Basta citar a fonte! Beijos!

    ResponderExcluir
  5. Amei passar por aqui.
    Ler é renascer para vida.Apareça no meu blogger.bjs

    ResponderExcluir
  6. Esse texto despertou em mim um forte sentimento de nostalgia e emoção.A EXPERIÊNCIA EM SI É UMA SENHORA POESIA!

    ResponderExcluir
  7. foi divertido e foi bom. tínhamos uma ingenuidade que as vezes eu gostaria de ter mantido. lembro uma vez que o tio nera comprou quatro bilhetes de uma rifa, no calçadão, onde nos três (eu, você e o karl) estávamos tomando cerveja (eu acho). ele assinou nereu goss, nereu karl, nereu arruda e nereu brüggemann. devíamos bebemorar o tio nera qualquer dia destes.

    ResponderExcluir
  8. Como faço para ler seu livro, professor Raul? Quanto à poesia, também sinto o mesmo: fui seduzido pela prosa.

    ResponderExcluir