Não poder ir ao cinema é um dos estragos
que o Covid-19 produziu. Tenho saudades da tela grande, das poltronas confortáveis, da fantasia projetada na
tela, do som muitas vezes acima do tolerado, da solidão compartilhada com outras
pessoas.
Quem defende home theater, televisões
enormes, Netfix, streaming, DVD e demais bugigangas modernosas, provavelmente
detesta cinema. Argumentar que essas artimanhas são formas de acessar as produções
artísticas que rompem com as políticas de distribuição dos filmes, nada mais é
do que contribuir para a manutenção de um sistema de dominação capitalista. No
aconchego do lar, com todo o conforto possível, ninguém está interessado nos
excluídos, naqueles que nunca terão oportunidade de compartilhar da experiência
cultural.
Assistir os filmes não substitui a
experiência do cinema. É outra coisa. E bem diferente. Ah, dublagem só se
admite na Sessão da Tarde, que é uma alternativa para passar o tempo quando se
está em casa e não há nada mais interessante para fazer. Cinema é som original!
Felix Guattari, quando disse que o
cinema é o divã do pobre, estava pensando que, além de ser uma fonte de
prazer, o cinema também fornece uma espécie de terapia transversa. Durante duas
horas (ou menos, ou mais), os problemas ficam do lado de fora. Essa pausa,
diferente da alienação, possibilita o descanso mental, o recarregar das
baterias (na expressão de um amigo).
Quando comecei a trabalhar no serviço público,
na metade dos anos 80, tínhamos um projeto cultural de levar cinema para os
bairros. Partindo de um convênio com o SESC (que forneceu os filmes),
arregaçamos as mangas e fomos à luta. Éramos jovens e gostávamos desses clichês
de heroicidade, de integração do intelectual com as massas trabalhadoras. Havia
uma aura gramscianiana na peripécia.
Emoldurávamos a parede da Associação de
Moradores com um lençol branco e ficávamos torcendo para que a correia do
projetor 16mm não arrebentasse durante a exibição do filme. Triste ilusão, era
acontecimento comum – por isso, carregávamos uma sobressalente.
Muitos anos depois, quando vi Cinema,
Aspirinas e Urubus (Dir. Marcelo Gomes, 2005), disse para mim mesmo: a nossa
história é muito parecida com essa.
O clássico do período foi Estrada da
Vida (Dir. Nelson Pereira dos Santos, 1980), com a dupla de cantores Milionário
e José Rico. Assisti a esse filme umas vinte vezes. O público conhecia todas as
canções (e cantava em voz alta). Várias vezes, depois de guardar o equipamento,
o pessoal envolvido na produção do projeto precisou lanchar sanduíche de
mortadela com cerveja quente, no boteco mais próximo. Foi um período divertido.
Quase toda semana mudava a programação.
Tivemos excelente recepção para O Assalto ao Trem Pagador (Dir. Roberto
Farias, 1962), Eles não Usam Black-tie (Dir. Leon Hirszman, 1981), Pra
Frente, Brasil (Dir. Roberto Farias, 1982), Sargento Getúlio (Dir. Hermanno
Penna, 1983) e O Crime dos Irmãos Naves (Dir. Luís Sérgio Person, 1967),
entre outros momentos mágicos da proposta.
Mas,... Nem tudo foram flores. Junto com
o grande Lota Lothar Cruz, protagonizei uma pequena sacanagem com o cineasta Eduardo
Coutinho. Não deveria contar isso, mas faz tanto tempo que... Danem-se os
escrúpulos! Fomos exibir em Correia Pinto um dos mais importantes documentários
do cinema brasileiro, Cabra Marcado para Morrer (1984). O público não foi muito
receptivo. Estou usando um eufemismo. O pessoal era barra pesada. Chamei a
atenção do Lota para algumas coisas que estavam acontecendo ao nosso redor. O
filme é longo, a narrativa arrastada. Estava no final do primeiro rolo (de um
total de três). Passei para ele o último rolo (que era menor) e disse:
ninguém está prestando atenção! Ele concordou. Ou seja, não exibimos a parte
mais importante! Estranhamente, houve aplausos no final. Saímos
daquele ambiente o mais rápido possível!
A experiência de divulgação do cinema brasileiro para um
público que poucas vezes tinha acesso às salas convencionais foi
excelente – enquanto durou. E não durou muito. Política cultural está muito
distante da realpolitik – sempre.
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