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quinta-feira, 7 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XLVI)




Acordei com vontade de comer pudim. Se não for pedir demais, pudim de leite condensado e calda de caramelo. E com um sabor que se aproxime daquele que somente a minha mãe sabia fazer. Doce ilusão. Faz tempo que Dona Vina se retirou das lides culinárias. Sobrou – apenas – a lembrança daqueles domingos fartos em que a parte mais importante do almoço era a sobremesa.    

Na minha família, os doces sempre estiveram presentes. Talvez uma forma de compensação. Sei lá. Há mais mistérios em uma refeição do que supõe a vã imaginação dos meninos, como disse aquele filósofo literário que esqueci o nome, mas que sempre associo com milk shake – uma delícia que só fui experimentar quanto tinha mais de 20 anos.

Dependendo da circunstância, do orçamento doméstico e da boa vontade da mãe, o cardápio das gostosuras domésticas variava entre arroz doce (polvilhado com canela), sagu (de leite ou com vinho), gelatinas coloridas, compotas (maçã, laranja, pera, pero-figo), pavês diversos, maria-mole, pêssego em calda com creme de leite. Um turbilhão de cores e paladares.  


Sorvete nunca foi prioridade. A história era outra quando envolvia picolé. Muitas brigas aconteceram lá em casa porque cometi o pecado imperdoável de trocar garrafas por vários blocos doces congelados de sucos de frutas ou de outras bebidas doces (conforme a definição precisa da Wikipédia). Ironicamente, ao me bater, meu pai me ensinou um pouco de economia marxista: a diferença entre valor de troca e valor de uso.   

Frutas sempre estiveram presentes na nossa família, mas nunca foram consideradas como “doces”. Banana, maçã, goiaba branca, uva – comíamos durante o dia, entre uma refeição e outra. Como se dizia na época, era para enganar a fome. Vergamota era presença obrigatória (só mais tarde, muito mais tarde, é que descobrimos o nome correto: bergamota). No sítio, as frutas de passarinho davam um sabor especial à infância: uvaia, são joão, butiá, figo, guabiroba (uma espécie de araçá), amora silvestre.


No entrecruzamento entre os modos de viver urbano e rural, o doce de gila (jila, chila) é a estrela principal. Mas nunca foi unanimidade. Há os que amam e os que odeiam. Talvez o segundo grupo seja maior. Talvez. Herança de um tempo em que a vida dos primeiros habitantes brancos do Planalto Catarinense implicava em usar o máximo de criatividade, a gila (Cucurbita ficifolia), parente da melancia e do pepino, é uma espécie de patrimônio cultural da região. Alimento rico em fibras e paupérrimo em sabor, necessita da adição de açúcar e especiarias: cravo, canela, casca de limão, casca de laranja (quais e em que quantidade depende do gosto de quem está fazendo o doce). Depois de ferver durante algum tempo, produz um doce sensacional. O pessoal que entende do assunto recomenda que a fruta (em forma de abóbora) deve ser dividida em vários pedaços atirando-a no chão. A utilização de facas e objetos cortantes altera o sabor!


Lembrar essa imersão no universo açucarado me deu água na boca. Ou seja, me deixou com mais vontade. Felizmente, não sou diabético. Não sei se conseguiria sobreviver sem doces.

Desafortunadamente, hoje, não consegui saciar o desejo. Liguei para vários restaurantes que entregam comida a domicílio. Nenhum tinha pudim. Poderia ter substituído por chocolate. Resisti. Fiquei com a impressão que seria uma espécie de traição ao pudim. Minha sobremesa foi mais frugal: um cacho de uvas.

O pudim ficou para amanhã. Ou depois. Ironicamente, no meio de todas essas recordações sobre sobremesas, me vi cantando (desafinado, obviamente) um trecho de uma canção do Osvaldo Farrés (1947): Siempre que te pregunto / Que cuándo, como y donde / Tu siempre me respondes / Quizás, quizás, quizás // Y así pasan los dias / Y yo desesperando / Y tu contestando / Quizás, quizás, quizás.

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