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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CL)

 


A doença sempre ocupou um lugar de destaque na literatura. Talvez por ser uma metáfora fácil de ser assimilada pelo leitor, talvez porque a humanidade precisa, inconscientemente, negar – com todas as suas forças – o poder da morte. Independente do motivo, livros como A Montanha Mágica (Thomas Mann), A Peste (Albert Camus), Édipo-Rei (Sófocles), Decameron (Giovanni Boccaccio) e A Morte de Ivan Ilitch (Liev Tolstói) costumam ser lembrados como formas exemplares de tratamento literário sobre o tema.

Durante muito tempo, a peste negra, o câncer e a tuberculose foram fonte de inspiração para um tipo de literatura que oscila entre a resistência e a resiliência. Infelizmente, em algumas ocasiões, escorrega perigosamente para esse terreno pouco seguro que é a autoajuda, como comprova a sick lit, subgênero explorado à exaustão por John Green e Nicholas Spark, entre outros.

Nos últimos trinta anos – mais ou menos –, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS/SIDA) entrou na relação das enfermidades que merecem atenção literária – possivelmente porque em determinado momento foi interpretada como uma doença que não discriminava classes sociais ou econômicas (e atingia a todos os que tinham uma vida sexual conturbada). Mais tarde, essa tese se comprovou equivocada. Entre os muitos textos que atingiram um grau acima da média, destacam-se um conto de Susan Sontag, Assim Vivemos Agora, e o romance de Colm Tóibín, A Luz do Farol.

A estrutura polifônica (em um conto!!!) proposta por Sontag estabelece através de várias informações, algumas desencontradas, a situação crítica em que se encontra um amigo comum. O texto consegue mostrar a formação de uma rede de solidariedade – ao mesmo tempo em que vai narrando o estado de saúde do doente. Na narrativa de Tóibin, a relação familiar fragmentada encontra os laços perdidos. A irmã, a mãe e a avó se unem para cuidar do rapaz que está morrendo. Lírico, sensível, humano – não são poucos os adjetivos que podem e devem ser usados para qualificar esse romance.

Provavelmente, o Covid-19 também será alvo de algumas narrativas nos próximos anos. É o caminho natural da literatura (e, logo depois, do cinema). O advento de uma nova enfermidade (que não passa de uma mutação genética de uma doença antiga) possibilita desdobramentos infinitos do tema e das variações que o acompanham. Haverá de tudo um pouco: narrativas apocalípticas, histórias de amor, perdas emocionais, fábulas religiosas, desencontros familiares, extermínio das populações indígenas, o percurso do herói e algumas táticas de sobrevivência em um mundo hostil. Simultaneamente, as livrarias oferecerão grande quantidade de estudos literários e sociológicos – estruturas lógicas (ou não) para tentar compreender o que aconteceu (o que está acontecendo).

Em todos os textos que serão escritos em futuro próximo, a questão política será ingrediente fundamental. As razões que transformaram o Covid-19 em ameaça estão intimamente ligadas com o capitalismo predatório, com a negligência em adotar medidas de prevenção sanitária e ausência de consciência ecológica. Possivelmente esses fatores não explicam os fatos de forma direta, mas de algum modo contribuíram para que a humanidade ficasse em situação de perigo.

A pandemia não significa o fim do mundo – sempre há sobreviventes em todas as crises. Mas deve ser vista como uma advertência. Cabe aos governos adotarem algumas medidas preventivas para tentar impedir que esse fenômeno se torne rotina.


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