Páginas

terça-feira, 25 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLI)


Galilée devant le Saint-Office au VaticanJoseph-Nicolas Robert-Fleury,
salon de 1847. Musée du Louvre
.


Em alguns momentos, depois de ler (ou assistir) o noticiário nacional, percebe-se que a literatura mais terrível (aquela que trata de traições, taras diversas, mediocridades e escândalos) não consegue competir com a realidade.

A vida é assim, poderia-se argumentar diante de tantos desastres. Ocorre que, mesmo que se admita que algo está fora de lugar, a vida não é assim. Ou não deveria ser. Nesse beco sem saída em que o Brasil se encontra, é necessário ter consciência de que os arrivistas tomaram conta do palanque e instituíram uma narrativa que exalta a ignorância e o desprezo aos conceitos mínimos de civilidade. O país está vivendo um tempo similar ao da Idade Média, onde a superstição e o temor da ira divina negam a ciência e a lógica.  

O comportamento agressivo, a falta de decoro e o uso frequente de notícias falsas são escudos usados para esconder algum tipo de deficiência (física, psicológica, moral, intelectual – talvez todas). Esse conjunto de atitudes serve de estímulo para que a matilha (formada por ressentidos, histéricos e portadores de deficiência cognitiva) se insurja contra o racional. Presos dentro do armário fascista durante muitos anos, não souberam se comportar no momento em que abriram a porta e encontraram a claridade. Ainda estão combatendo as sombras. Mais do que uma versão farsesca do mito da caverna de Platão, falta-lhes o devido verniz cultural para perceber que lucidez deriva da palavra latina lux.

Nesse ritmo, está o caso da deputada que, dizem, ordenou a morte do esposo. Nenhuma novidade, a polícia sempre esteve próxima da política. Algumas vezes por conluio, outras para investigar crimes cometidos por parlamentares. E, no atual cenário que reveste o poder, delitos não estão em falta – além dos casos amplamente divulgados pela imprensa, algumas particularidades se destacam: lobbys, corrupção, “rachadinhas”, etc.

Representante da onda conservadora que assumiu o poder no país, a deputada, que também é pastora evangélica, comprova que algumas escolhas eleitorais não foram feitas para respeitar os interesses da democracia. Retifico, não correspondem ao exercício social. No choque entre a imagem pública e a vida privada, há segredos e infâmias – que costumam ser escondidos debaixo do tapete, junto com as demais sujeiras da vida doméstica. Como escreveu Nelson Rodrigues, Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.  

Os ingredientes que compõem a história que está nos jornais (sendo o incesto a infração de menor gravidade) fariam as delícias de escritores do porte de Restif de La Bretonne (1734-1806), Marquês de Sade (1740-1814), Nelson Rodrigues (1912-1980) e Rubem Fonseca (1925-2020). Possivelmente alguma cena do agrado de Jean Genet (1910-1986) também está presente nessa tragédia carioca. Basta ser paciente e aguardar as próximas revelações. Para o bem e para o mal, todo enredo de qualidade precisa de um (ou diversos) plot twist.

Aqueles que defendem a moral e os bons costumes, usualmente utilizando a bíblia como se fosse uma arma, acabam mostrando o quanto estão contaminados pela hipocrisia e pela desonestidade. O caso da deputada não pode ser entendido como algo isolado. Também não deve fomentar preconceitos com as escolhas religiosas. Existem maçãs podres em todos os cestos, cabe adotar mecanismos de controle para impedir que a contaminação atinja as outras frutas.



Nenhum comentário:

Postar um comentário