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terça-feira, 18 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLVI)

 


O mundo acabou. Milhares de pessoas mortas em poucos dias. Um tipo especial de gripe. São poucos os que conseguem escapar da hecatombe. Mesmo para aqueles que – no início – cumprem algum tipo de quarentena, depois de algum tempo nada mais lhes resta senão se deslocarem das cidades para o campo em busca de comida. Os meios de transporte colapsam, as fábricas deixam de produzir, não há luz elétrica, vandalismo e depredação se tornam constantes, os instintos mais primitivos e o messianismo religioso surgem como faces complementares do horror. Em linhas gerais, essa é a estrutura do romance Estação Onze, de Emily St. John Mandel (Editora Intrínseca, 2015).   

Há um grupo de leitores que defende a tese de que, para conservar a sanidade mental durante a pandemia de Covid-19, o melhor a fazer é evitar as narrativas catastróficas. Dizem que a realidade é assustadora o suficiente. Por isso, preferem livros menos contundentes.

Em contrapartida, muitas pessoas possuem entendimento diferente. Ou seja, visualizam a literatura como representação (simbólica, imaginária, alegórica) da realidade e que (nesses termos) não existe razão para se afastar dos livros que abordam temas complicados. Se a literatura é estranhamento e subversão, porque fugir desse tipo de abordagem?

Quem está com a razão? Todos e ninguém. Se alguém não consegue avançar na leitura (e não importa por qual motivo), cabe deixá-la para outro instante. Ou ignorá-la para todo o sempre. A literatura não funciona como imposição. O que vale é o prazer de ler, como defendia Roland Barthes. 

Para aqueles que decidem enfrentar a Esfinge, a Medusa ou qualquer outro monstro, há os riscos da aventura. E não são poucos. Também existem compensações. Em Estação Onze o leitor encontra um intenso dialogo com o teatro shakespeariano. Um personagem importante, Arthur Leander, morre (na primeira página) enquanto interpreta Rei Lear, peça que foi escrita em 1605, durante o surto de peste bubônica que matou 10% da população de Londres (entre 1603 e 1613). A companhia teatral Sinfonia Itinerante encena Sonhos de uma Noite de Verão em praça pública. Há vestígios de A Tempestade (com destaque para o isolamento). Parte da fruição da leitura está em procurar por essas referências, concordando que alguns livros foram escritos para, entre outras coisas, despertar a curiosidade do leitor. Encontrar easter eggs é uma forma de se aproximar do Aleph borgiano, lugar impreciso onde todos os livros se conectam, onde as bibliotecas se multiplicam.  

A morte de Arthur e a gripe da Geórgia vão afetar (em maior ou menor grau) praticamente todos os personagens do livro – uma espécie de efeito dominó. Entre as ruínas, todos eles lutam desesperadamente para continuarem vivos, para não esquecer o peso que é carregar o passado (um dos personagens, Clark Thompson, constrói um Museu da Civilização, com objetos que servem de lembrança do mundo que foi destruído).

A frase tatuada no antebraço esquerdo de Kirsten Raymonde, Sobreviver não é o suficiente (retirada de Star Trek: Voyager, episódio 122), significa, entre outras coisas, que a arte, a solidariedade e a esperança são formas de ligação com o humano. A frase também é o lema da Sinfonia Itinerante.

Ao adotar como recurso técnico o flash-back, ou seja, os deslocamentos temporais, Emily St. John Mandel forneceu condição para que o encadeamento se realize com eficiência, gerando interesse e expectativa no leitor. A narrativa está centrada no realismo (e, portanto, afastada da ficção científica). 

Alguns leitores encontrarão semelhanças com A Estrada, do Cormac McCarthy – não é coincidência.              

Emily St. Johh Mandel


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