Páginas

domingo, 23 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLIX)

 



Os óculos, na falta de melhor expressão, são a minha janela particular para ver o mundo. Sou míope desde um tempo que não lembro mais. E não me reconheço sem essa ferramenta de ver o longe. Por isso, e alguns outros motivos, o embaçar das lentes é um dos incômodos que mais me afeta na pandemia.

Quando uso máscara, os óculos ficam pendurados na camisa. O olhar se retrai. Uma enorme massa desfigurada se apresenta no horizonte. Olho para baixo, para evitar tropeçar nos buracos que enfeiam as ruas da cidade. Caminhar está se tornando o mais perigoso dos deslocamentos urbanos.

O alcance visual do mundo exterior desaparece. Lucina, personagem do romance chileno Sangue no Olho (São Paulo: Cosac Naify, 2015), da Lina Meruane, vai perdendo a visão aos poucos, uma tortura que vai se esparramando sem que apresente a mínima esperança de reversão. É uma perspectiva muito mais angustiante do que a metáfora política de Ensaio Sobre a Cegueira (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), de José Saramago, onde há (pedindo perdão pelo trocadilho ruim) uma luz no fim do túnel.

Jorge Luiz Borges viveu sem enxergar por 32 anos, mas nunca perdeu o costume de comprar livros. É o que relata o jovem (16 anos) Alberto Manguel, funcionário da Livraria Pygmalion, em Buenos Aires: Um dia, após escolher alguns títulos, ele me convidou para visitá-lo e ler para ele à noite, caso eu não tivesse mais nada para fazer (in: Com Borges. Belo Horizonte: Âyiné, 2018). Imagino que esse drama seja similar ao de Glauco Mattoso, que não enxerga faz algum tempo, mas continua compondo os seus poemas fesceninos com assiduidade.

Para João Cabral de Melo Neto, que foi perdendo, aos poucos, o contato com imagens e formas, a escuridão somada com a enxaqueca constante lhe tirou o gosto pela vida. A poesia cerebral, rigorosa na escolha de cada palavra, de cada verso, somente era possível na claridade.

Segundo a lenda grega, Homero era cego, recitava versos para poder sobreviver e a poesia era (literalmente) o seu alimento. John Milton teve glaucoma quando estava preso. James Joyce se submeteu a várias cirurgias oftalmológicas, mas não foi possível atenuar as lesões. Aldous Huxley foi vítima de uma doença rara aos 17 anos – na vida adulta compensou os danos com lentes de aumento. Luiz Vaz de Camões perdeu um dos olhos em uma batalha em África, mas isso não o impediu de produzir uma obra poética espetacular.

Entre os muitos medos que abrigo, a opacidade ocular tem lugar de honra. Não me parece correto viver sem poder ler, sem poder desfrutar do espetáculo das cores. Ciente de que a vida não é justa, costumo visitar o oftalmologista com alguma frequência. É o único médico em que confio.

A incompatibilidade dos óculos com a máscara possibilita uma pequena vantagem. A postura social das pequenas cidades exige que as pessoas se cumprimentem, sejam amáveis, finjam civilidade, e eu não sou fã desses procederes – principalmente em alguns casos específicos. A pandemia está proporcionando uma formula fácil: Desculpe, não te vi.  


Nenhum comentário:

Postar um comentário