Algumas surpresas se escondem dentro dos livros. Não estou me referindo ao conteúdo ou ao tema abordado. Trata-se de outra coisa. Ontem, a Rede Globo, no meio da madrugada, exibiu Berenice Procura (dir. Allan Fiterman, 2018), baseado no romance homônimo do Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Movido pela curiosidade, li uma breve sinopse do filme em um desses blogs de cinema. Uma história maluca, uma mulher que dirige táxi, uma travesti assassinada, drama familiar misturado com suspense policial. Em primeiro plano, a paisagem carioca. O Delegado Espinosa, personagem icônico do Garcia-Roza, está ausente.
Com vontade de assistir o filme, procurei o volume na estante para antecipar alguns detalhes. Ao folheá-lo, caiu no chão a nota fiscal de compra. Cenas antigas voltaram a ter nitidez.
Adquiri o livro em dezembro de 2005 e só fui pagar três meses depois. Naquele tempo, cada vez mais longínquo, eu podia fazer fiado na livraria. Culpa, obviamente, de Dona Maria Rath, que, muitos anos antes, em gesto insensato, me disse que eu poderia levar todos os livros que quisesse e que não precisava me preocupar em resgatar a dívida. Ela ia anotando e, quando a minha situação financeira melhorasse, a gente entraria em acordo.
Assim como os alcoólatras, os diabéticos e os usuários de drogas, os bibliófilos são viciados perigosos. A mentira torna-se um hábito recorrente. Ter a posse deste ou daquele livro faz com que se esqueçam de cumprir com as promessas. Claro que tentei pagar todas as contas, algumas vezes com uns seis meses de atraso, mas... sempre queria ler os lançamentos, algum clássico que ainda não tinha. Alguém fazia alguma recomendação e eu não conseguia me controlar. No balcão da livraria, encomendava os livros.
Naquela época, funcionário público municipal de quinto escalão, pagando aluguel e pensão para o filho, no meio de um curso acadêmico que me obrigava a ir para Florianópolis toda semana, frequentando bar, restaurantes e similares, quando é que poderia dispor de sobra de caixa?
Algumas vezes, como é comum entre os inconsequentes, transferi a responsabilidade. Disse para Dona Maria: Por favor, corte o meu crédito, diga que não posso mais levar nada, não tenho dinheiro para pagar o que devo. Ela olhava para mim, ria e balançava a cabeça, incrédula. Não se preocupe, um dia você paga – respondia com aquela voz de avó, com aquele carinho que nunca mereci.
Na semana seguinte, ela me telefonava, convidando para dar uma olhada no caminhão da Livraria Curitiba, que estava chegando à cidade. Quem sabe o Josué trouxe alguma coisa que te interesse, avisava. A tentação vencia a prudência e o saldo devedor era ampliado com mais três ou quatro romances e uns dois ensaios literários.
Fomos arrastando essa situação até 2009,
quando A Sua Livraria fechou as portas. Esporadicamente, fui amortizando o
débito, mas não tenho certeza se paguei tudo o que devia.
Insone, vi Berenice procura. Filme ruim, com personagens rasos. A sensação de decepção (o roteiro não deu conta do enredo) vai me obrigar a reler o romance de Garcia-Roza – para confirmar ou desmentir o que vi na tela da televisão.
A SUA LIVRARIA, um Oásis cultural da Lages antiga. Belo texto amigo Raul.
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