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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLII)

 


Dia de chuva exige energia redobrada. Paciência e música também não fazem mal. Aproveitei para executar algumas tarefas que tinham sido adiadas (nunca é demais afirmar que postergar é um verbo amoroso na minha vida).

No período da manhã me dediquei às tarefas de rotina: lavar a louça, encharcar o banheiro com água sanitária, varrer o escritório, tomar banho, responder parte da correspondência virtual, acessar a internet e ler as notícias do dia.

Também fui à janela, para ver a chuva (miúda, fria, poética) durante uma meia hora. Espantei a sensação de solidão, tomando chá, aquecendo as mãos no calor da caneca.

Depois do almoço (bife a milanesa), li algumas páginas de Estação Onze (Emily Saint John Mandel), uma narrativa apocalíptica que só descobri a existência recentemente. Além do diálogo incessante com a obra de Shakespeare, o livro retrata as ruínas de um mundo que quase desaparece depois de um surto de gripe. Lembra um pouco A Estrada (Cormac McCarthy), mas não muito, e faz algumas referências aos tempos atuais (embora tenha sido escrito em 2014).

Depois de procurar (e encontrar) alguns documentos da minha mãe, separei muitas notas fiscais (e recibos) que estavam acumuladas em uma gaveta. Joguei parte dessa papelada inútil no lixo. Guardei as faturas de condomínio, luz e telefone (nunca se sabe o que pode acontecer no amanhã). Assisti uma laive da Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Comprei dois livros na Estante Virtual (um ensaio sobre Walter Benjamin e um romance nacional distópico, mas baseado nas relações político-religiosas contemporâneas). Ouvi um pouco de música. Assisti outra laive.  

Mas nenhuma dessas atividades exaustivas serviu para diminuir a alegria que senti ao constatar que a gelatina que fiz ontem ficou excelente. O sabor e a consistência estão perfeitos. Com a colher na mão, a criança que existe dentro de mim reapareceu, comeu tudo e pediu mais. Infelizmente, só poderei repor o estoque amanhã ou sexta-feira.

A vantagem é que, nesse ritmo de destreza gastronômica, posso pensar em novas aventuras, quiçá bolo de caneca ou, no caso de um surto de ambição, pudim. O céu é o limite e a cozinha deixará de ser território de passagem.

Enquanto isso não acontece, sigo usando o micro-ondas para esquentar a comida ou a água. Ainda não encontrei outras utilidades (que devem existir, creio). Tenho grande apreço pela geladeira, pois sem ela precisaria beber coca-cola na temperatura ambiente – e isso é horrível. Claro, há outras vantagens, conserva o iogurte, o sorvete e, agora, a gelatina. Os armários são apenas depósitos de louça e comida, tenho pouco interesse no que eles podem me dizer – e quando falam, sempre é para me avisar que preciso ir ao supermercado. Com a pia tenho uma relação passivo-agressiva, gosto de vê-la como um móvel inofensivo e que vai se transformando em monstro na medida em que a louça fica suja. 

Evidentemente, as coisas já foram piores. Morei, durante muito tempo, em um apartamento minúsculo, onde a cozinha era quase ficcional.




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