Páginas

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXLVII)

 


Nesse período de quarentena, a vida (de um homem que mora sozinho em um apartamento enorme) pode ser comparada com a do comandante de um navio que precisa a todo instante consultar as cartas náuticas para estabelecer a melhor rota, evitar os icebergs, os bancos de areia e as tempestades marítimas. Também deve olhar para o horizonte, sempre há um farol anunciando a proximidade com a terra firme.

Não sei se essa analogia pode ser usada para destacar que, todos os dias, é imperativo decidir quais são as prioridades domésticas: lavar a louça, limpar o banheiro, trocar a roupa de cama, determinar o que almoçar e jantar, quais são as laives a serem assistidas, etc. Qualquer resolução equivocada compromete o restante do dia.

Evidentemente, pode-se optar por deixar o navio à deriva, deitar no sofá e ver algum filme ou vídeo de stand-up. A Internet está repleta desse tipo de entretenimentos. Ler, enquanto algum disco de jazz ilumina o escritório, também é uma alternativa válida. Ninguém vai tentar impedir essas atividades recreativas,... Apesar de isso tudo parecer simpático, nem sempre é a melhor solução. Infelizmente.

Algumas tarefas domésticas são inadiáveis. O lixo, por exemplo, parece se multiplicar por geração espontânea. Basta um descuido e restos de comida, embalagens de Sonho de Valsa, latas de Coca-Cola, saquinhos de chá, cascas de banana, garrafas de suco e potes vazios de iogurte formam uma pilha enorme de detritos. Como não é possível ir à cozinha sem olhar para esse desastre, não sobra alternativa senão separar os resíduos em diferentes sacos de lixo (de supermercado também servem). A matéria orgânica não deve ser misturada com a inorgânica. O que pode ser reciclado e as máscaras descartáveis usadas precisam estar separados das outras coisas. Diante dessa miríade de detalhes aumenta a vontade de juntar tudo em um único recipiente e mandar a consciência ecológica para o lugar onde o Judas perdeu as botas. Obviamente, em nome dos ideais civilizatórios, isso não acontece. No final da tarde, o sujeito precisa carregar seis ou oito pacotes até a lixeira do prédio.

Outra atividade cansativa é a limpeza da cozinha. Não creio que tamanho aborrecimento possa ser descrito em palavras. Então, nem vale a pena tentar. Quando a pandemia passar, se passar, a única atitude possível será rever o salário da Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD), porque está muito desvalorizando o esforço que ela faz.

Nesses últimos quatro ou cinco meses foram retirados das estantes uns duzentos livros (mais ou menos). Deveriam ter sido recolocados nos lugares de origem (sobrenome do autor como método de classificação) depois da leitura (ou consulta). Não foram. Pior, todo dia a tarefa é adiada. E, como se não bastasse, outros desgarrados estão se somando a essa diáspora bibliográfica. A bagunça organizada tende a se transformar em caos.

Pare o mundo, que eu quero descer. Essa é a frase que não se deve dizer (por enquanto). Apesar de todas as complicações, onde se revelam diversos níveis de inabilidade, não há (muitos) motivos para queixas. A vida tem sido generosa com os incompetentes e cabe agradecer por isso todos os dias.


Nenhum comentário:

Postar um comentário