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sábado, 8 de agosto de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXXVIII)

 

Na pré-adolescência, o irmão de um amigo era aluno do curso por correspondência técnico em eletrônica do Instituto Universal Brasileiro. Lembro que montou um rádio normal (onde podíamos ouvir o célebre slogan regional: Se a Clube não deu, é porque não aconteceu) e um rádio amador (que durante muito tempo foi uma forma de comunicação alternativa entre os malucos). Evidentemente, apesar do exagero, esse cara era visto pela família e pelos amigos como um cientista. Algum tempo depois, eles se mudaram para o litoral e perdi o contato. 

Lembrei-me disso, tantos anos depois, porque o tecnicismo está voltando à tona como parte do conceito neoliberal de divisão do trabalho. Aqueles que querem impedir que parte da população obtenha ascensão social, econômica e política estão defendendo a ideia de que o país não deve saturar o mercado com profissionais de curso superior. Nessa visão, parte da população apta para ingressar no mercado de trabalho (especialmente negros, pardos e pobres) deve se concentrar no ensino técnico, fornecendo, dizem eles, a base para que alguns setores da economia se desenvolvam com tranquilidade. E quem não conseguir uma formação técnica, deve se contentar com as demais funções, aquelas que exigem trabalho braçal e oferecem salários aviltantes.

Por trás desse conceito está um regime de subordinação do trabalhador. Algo similar ao antigo pensamento escravocrata de que não se deve misturar qualquer um com gente de bem e que cada um deve saber o seu lugar. Ao defender a reserva de mercado do ensino universitário (o que significa eliminar o sistema de cotas), a meritocracia emerge como uma força que quer, a qualquer custo, controlar as relações econômicas – e, simultaneamente, se recusa a dividir as relações de poder com aqueles que não possuem berço. Mais do que uma ressignificação do conceito Casa Grande & Senzala, confirma a segregação e o preconceito estrutural do Brasil.

A implantação do sistema de uberização de trabalho sanciona esse pensamento – e multiplica a precariedade em tempos de Covid-19. A exposição diária a uma possível contaminação (e a consequente perda do emprego e, talvez, da vida), além de rebaixar a cotação desses trabalhadores no mercado laboral, não fornece garantias básicas, pois os trabalhadores estão desprotegidos juridicamente pelas anomalias promovidas pela flexibilização das relações trabalhistas – que, mais uma vez, remete ao sistema escravocrata.

A reforma previdenciária, que ampliou o tempo de serviço, aumentou o valor das contribuições e implantou teto para o benefício da aposentadoria, produzirá, em médio prazo, uma horda de cidadãos em estado de pobreza absoluta. O Estado está implantando a necropolítica (ver o índice de suicídios entre velhos, no Chile, onde este tipo de experimento eugênico foi testado pela primeira vez na América Latina).

Por fim, a cruzada do Estado contra os sindicatos (um dos instrumentos mais eficientes de proteção dos direitos do trabalhador) ampliou o poder de pressão econômica do patrão, permitindo que os valores dos salários sejam determinados de acordo com a conveniência – e muito distante de alguma cifra que possa ser considerada adequada para remunerar a força de trabalho.

Resta para o trabalhador adotar o discurso da servidão voluntária ou procurar alternativas para se defender da opressão estatal. No final do ano teremos eleições. É uma possibilidade. 



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