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quinta-feira, 2 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CII)



Em alguns momentos (não muitos), tenho vontade de tornar pública a minha opinião sobre a crise política que o Brasil enfrenta atualmente. Essa pretensão de dar palpite em algo que está momentaneamente fora do meu alcance desaparece dez minutos mais tarde – e isso me impede o amargar algum tipo de arrependimento.   

No mundo em que o Google fornece resposta para qualquer pergunta, as pessoas passaram a acreditar que podem opinar sobre todos os assuntos. Da física nuclear ao direito constitucional, do manejo do gado ao melhor candidato nas próximas eleições, do melhor brinquedo na Disneylândia até o funcionamento dos shoppings – não há limite para essa ansiedade.

Lembro que Mestre João Rath, do alto de sua sabedoria infinita, costumava repetir uma frase latina que anda quase esquecida, Sutor, ne ultra crepidam, que, em tradução ligeira, significa não vá o sapateiro além das chinelas. Isto é, por mais “sabido” que seja o indivíduo, há momentos e assuntos em que a prudência recomenda a abstenção. Na linguagem popular, em boca fechada não entra mosca.

Mesmo assim, sabendo dos riscos que corro, e contrariando o primeiro parágrafo deste texto, vou tentar estabelecer (de maneira superficial) algumas considerações, quase todas baseadas na literatura.

No mundo conturbado em que vivemos, onde todos estão em posição de combate, falta a busca da leveza como reação ao peso do viver. Infelizmente, Ítalo Calvino (1923-1985) tinha outra perspectiva do futuro, jamais imaginou que o mundo iria se prostrar aos pés do caos, louvando o triunfo da insanidade e o império da barbárie.

Diariamente intuo que Franz Kafka (1883-1924) está vivo. Foi ele que disse que há esperança – só que não para nós, antecipando essa nova versão da peste negra. Como acréscimo, a distopia religiosa fundamentalista que nos cerca ultrapassa a lógica cartesiana, porque sustenta a destruição como forma de recriar a pureza. Ao indivíduo comum resta ter consciência de que será condenado, mais cedo ou mais tarde, por um crime incompreensível.

Outra impressão recorrente está relacionada com a República de Saló, a perversão baseada em texto de Donatien Alphonse François, o Marquês de Sade (1740-1814), e reinterpretada no cinema por Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Nessa metáfora desvairada das relações de poder, onde o fascismo estabelece as diferenças elementares entre o opressor e o oprimido, entre o humano e o fantoche, o horror só adquire status de existência porque, em momento impreciso, os indivíduos precisaram fazer uma escolha e preferiram eliminar a lucidez (palavra que deriva do latim lux, luz).

O destino dos profetas é pregar no deserto. Na Grécia mitológica, Cassandra podia prever o futuro – mas Apolo a amaldiçoou e ela ficou desacreditada. Provavelmente, no Brasil aconteceu fenômeno similar. Apesar dos avisos, poucos perceberam que estavam à beira do abismo – uma parcela da população preferiu dar um passo à frente.  


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