A quarentena se transformou em período
de hibernação? Abro a janela do escritório para confirmar que o mundo não
congelou e que o tempo segue caminhando. Agasalhado pela luz do sol, encontro o antídoto
contra a possibilidade (certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos) de me
transformar no fantasma de Rip van Winkle.
No conto de Washington Irving (1783-1859),
para fugir da esposa rabugenta, o marido entra na floresta. Depois de vários
eventos, resolve descansar por algum tempo. Ao acordar, 20 anos depois, encontra
um mundo que não reconhece – e que não o reconhece.
Esse estranhamento parece se repetir na
atualidade – o que havia anteriormente foi engolido pelas palavras vírus, doença,
pandemia, quarentena, pânico. O progresso tecnológico se revelou insuficiente
para entender os fatos. A empáfia mostrou o ridículo. A noção de que
tudo era possível fracassou. O crepúsculo se instalou e a modernidade regrediu
aos tempos da peste negra, na Idade Média. De forma trágica, 2020 será
classificado na linha histórica como um interregno, um período vazio.
O ser humano não consegue se reconhecer
nesse espelho embaçado. Como anotou Albert Camus (1913-1960), a primeira coisa
que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. Presos em casa, os indivíduos constatam que a dor da solidão parece não ter fim. Nesse paradoxo, mesmo que a ciência
apresente – em médio prazo – alguma solução para a crise, ninguém poderá negar
que o que ontem se apresentava como ficção científica, hoje retrata uma
metamorfose do abismo.
Santo padroeiro dos colapsos, Franz
Kafka (1883-1924) poderia construir um novo castelo. Não aquele em que o homem
é impedido de se aproximar, mil obstáculos a superar. Outro. Que não imitaria
labirintos e não apresentaria insetos monstruosos. Talvez o modelo ideal para concretizar
essa ideia seja o tenente Giovanni Drogo, aquele que fica olhando para o
horizonte, linha que se mostra imutável. Dia
após dia, tudo é igual no deserto (dos tártaros). Não há mudanças. Em algum momento, diante
do tédio, o desespero pode se apresentar transversalmente no desejo de passear
na barca de Caronte. Certamente, como manda o roteiro kafkaniano, esse lenitivo não será concedido.
Ao longe, como se fossem voyers, os
escritores contemporâneos tudo farão para entender essa loucura. Seguindo a vocação de fornecer documentos de
época (alguns falsificados), em algum momento aprisionarão a enfermidade
em milhares de palavras (contos, crônicas, novelas, romances). Os escombros da
memória projetarão (como nostalgia, como advertência) um tempo que desconhecia
o medo. Mas, em movimento simultâneo, também serão (serão?) capazes de projetar outro tempo. Tempo em que
a esperança não estará presa no fundo da caixa de Pandora.
Em condições normais, o inverno é substituído pela primavera.
Nenhum comentário:
Postar um comentário