Conta a lenda que Sherazade (Xerazade, Scheherezade) casou com
um rei (sultão?) persa (árabe?) que tinha o hábito pouco saudável de matar as esposas
depois da noite de núpcias. Para tentar fugir desse destino, ela começa a
contar algumas histórias – mas com a particularidade de interrompê-las ao
amanhecer. O monarca, curioso para saber o desfecho de cada uma dessas
narrativas, se deixa envolver pelo ardil e permite que a mulher viva, desde que
continue entretendo-o. Depois de mil e uma noites (que deve ser lido como um
número aleatório), o soberano desiste de executá-la.
A história de todo escritor se assemelha
com o mito de Sherazade. O texto precisa despertar o interesse do leitor. Não deve
induzir o tédio. Se isso se concretizar, a narrativa perde a importância como
transmissora da experiência humana – e possivelmente será descartada (guardadas
as devidas proporções, uma forma de morte).
Pouco importa se a história aconteceu ou
foi inventada – o leitor, diante do texto, encontra o encantamento. O poder
criativo da literatura permite que a formiga converse com a cigarra, que Marco
Polo se torne amigo de Kublai Khan, que uma mulher se vista de homem no sertão
mineiro e que a peste devore parte da população de Oran.
O milagre literário não está
condicionado com o realismo ou com o verossímil. Ou seja, não precisa estar
escorado em esquemas cartesianos. Verdade ou mentira são convenções ideológicas
que visam fornecer um ordenamento para o mundo. Diariamente, a vida está cheia de contradições – nos noticiários (espelho dos acontecimentos) impera a violência, a
insensatez, a fome, o horror. Então, por que exigir que a literatura seja um
exercício retilíneo e esteja amparada em fatos comprováveis?
No conjunto de contos que Sherazade conta
para o rei (sultão) estão presentes as histórias de Simbad, o Marujo, Ali Babá e os
Quarenta Ladrões, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, entre outras. Todas essas
narrativas possuem elementos “mágicos”, formulas de atração do olhar do leitor.
Na literatura, “o como” é mais importante
que “o que”. Isto é, a habilidade narrativa se impõe sobre o que está sendo
contado. A história mais boba adquire relevância se a estrutura for montada
adequadamente (domínio da linguagem, indução de emoções, controle do fluxo de
informações). Ninguém reclama de um romance de 500 páginas se surgir um elo afetivo
entre o leitor, os personagens e a ação narrativa.
Algumas “criaturas de papel” se tornaram
imortais porque conseguiram ultrapassar o suporte literário e adquirir uma
densidade “física”, próxima da humana: Elizabeth Bennet, Gregor Sansa, Molly Bloom, Holden
Caulfield, Anna Karênina, Clarissa Dolloway, Yuri Jivago, Maria Capitolina
Santiago (Capitu), Macunaíma, Macabéa, Paulo Honório, entre outros.
Milhares de dramas e comédias acontecem
todos os dias. A aventura literária consiste em transmitir essas histórias para
o leitor.
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