Páginas

domingo, 26 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXVI)



Conta a lenda que  Sherazade (Xerazade, Scheherezade) casou com um rei (sultão?) persa (árabe?) que tinha o hábito pouco saudável de matar as esposas depois da noite de núpcias. Para tentar fugir desse destino, ela começa a contar algumas histórias – mas com a particularidade de interrompê-las ao amanhecer. O monarca, curioso para saber o desfecho de cada uma dessas narrativas, se deixa envolver pelo ardil e permite que a mulher viva, desde que continue entretendo-o. Depois de mil e uma noites (que deve ser lido como um número aleatório), o soberano desiste de executá-la.

A história de todo escritor se assemelha com o mito de Sherazade. O texto precisa despertar o interesse do leitor. Não deve induzir o tédio. Se isso se concretizar, a narrativa perde a importância como transmissora da experiência humana – e possivelmente será descartada (guardadas as devidas proporções, uma forma de morte).

Pouco importa se a história aconteceu ou foi inventada – o leitor, diante do texto, encontra o encantamento. O poder criativo da literatura permite que a formiga converse com a cigarra, que Marco Polo se torne amigo de Kublai Khan, que uma mulher se vista de homem no sertão mineiro e que a peste devore parte da população de Oran.

O milagre literário não está condicionado com o realismo ou com o verossímil. Ou seja, não precisa estar escorado em esquemas cartesianos. Verdade ou mentira são convenções ideológicas que visam fornecer um ordenamento para o mundo. Diariamente, a vida está cheia de contradições – nos noticiários (espelho dos acontecimentos) impera a violência, a insensatez, a fome, o horror. Então, por que exigir que a literatura seja um exercício retilíneo e esteja amparada em fatos comprováveis?

No conjunto de contos que Sherazade conta para o rei (sultão) estão presentes as histórias de Simbad, o Marujo, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, entre outras. Todas essas narrativas possuem elementos “mágicos”, formulas de atração do olhar do leitor.    

Na literatura, “o como” é mais importante que “o que”. Isto é, a habilidade narrativa se impõe sobre o que está sendo contado. A história mais boba adquire relevância se a estrutura for montada adequadamente (domínio da linguagem, indução de emoções, controle do fluxo de informações). Ninguém reclama de um romance de 500 páginas se surgir um elo afetivo entre o leitor, os personagens e a ação narrativa.

Algumas “criaturas de papel” se tornaram imortais porque conseguiram ultrapassar o suporte literário e adquirir uma densidade “física”, próxima da humana: Elizabeth Bennet, Gregor Sansa, Molly Bloom, Holden Caulfield, Anna Karênina, Clarissa Dolloway, Yuri Jivago, Maria Capitolina Santiago (Capitu), Macunaíma, Macabéa, Paulo Honório, entre outros.

Milhares de dramas e comédias acontecem todos os dias. A aventura literária consiste em transmitir essas histórias para o leitor.


Nenhum comentário:

Postar um comentário