O Triunfo da Morte, óleo sobre tela, 1562 (Pieter Bruegel, o velho, 1525-1569) |
Quando comecei o Diário da Quarentena,
em 23 de março, imaginei que, no máximo, escreveria umas 30 ou 40 crônicas
(média de 500 palavras cada) e, depois, a vida voltaria ao ritmo cambaleante
que a caracteriza. Ou seja, o mundo se adaptaria (como sempre) aos pequenos colapsos
diários.
A ingenuidade custa caro. Este é o texto
nº 117 e a contabilidade da necropolítica parece não ter fim. Todos os dias se
tornaram um único dia, um longo feriado ou a monotonia repetitiva de Vladimir e
Estragon – que, a todo instante, sussurra no ouvido que ninguém está a
salvo.
A metáfora da situação excepcional
encontra em A Peste, de Albert Camus (1913-1960), a sua mais completa tradução: Os
flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando
se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo
as pestes, como as guerras, encontram as pessoas igualmente desprevenidas.
Nas páginas de Peste e Cólera, de
Patrick Deville (n. 1957), surge outro elemento importante: A grande peste da Idade
Média, a peste negra, causou vinte e cinco milhões de mortes. Metade da
população da Europa foi dizimada. Nenhuma guerra jamais provocou tamanha
hecatombe. A amplitude do flagelo é metafísica, revela a ira divina, o Castigo.
O otimismo se irmana com a
loucura, o negacionismo grita mais alto e tenta calar a razão – que, apesar de
seus pontos cegos, ainda é a melhor maneira de tentar desenhar essa miragem que
chamam de futuro.
A utopia se transformou em distopia. Similar
aos romances catastróficos de ficção científica, o inimigo não pode ser
identificado – é um ente invisível, uma ameaça amorfa – e está revestido de
medo.
Somente o bom senso conseguirá impedir o
surgimento de uma das pragas mais nefastas da convulsão social, os curandeiros.
Esses comerciantes do pânico não possuem escrúpulos e querem vender a esperança
como se fosse mercadoria. Oferecendo poções coloridas e milagres avulsos, esboçam
um paraíso que não pode ser entregue – porque inexistente.
Mas, como se não bastasse esse tipo de
alucinação, a crise tem outros vetores. A quarentena se converteu em sinônimo de
solidão: famílias estão separadas, amigos trocaram abraços por mensagens de
whatsapp, o surgimento de novas relações amorosas ficou mais difícil, as pessoas
se distanciaram, sobrou apenas a sombra projetada nas redes sociais – espelho em
que Narciso delineia a própria beleza. A angústia está adquirindo uma consistência
que dá para cortar com estilete. Aumentou o número de consultas on line com
psicólogos. Também houve um acréscimo no consumo de alguns fármacos e diversos estimulantes
– a religião daqueles que acreditam que os paraísos artificiais
conseguirão diminuir a dor.
O comércio perdeu parte de sua potência
e precisou se adaptar ao virtual – que nem sempre funciona e que se mostra incapaz
de superar o trabalho presencial. O índice de desemprego fomentou o subemprego
e onerou a Previdência Social. Simultaneamente, o Estado revela incompetência
para fornecer alguma solução (mesmo que seja paliativa).
Ao longe, felizes, os Cavaleiros do
Apocalipse se preparam para a colheita – que promete bater recordes.
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