Em pé: Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino, José Carlos de Oliveira. Sentados: Vinicius de Moraes e Sergio Porto. Foto de Paulo Garcez |
O Brasil é o país
das crônicas – e dos cronistas. Em cada esquina do país alguém está pronto para
colher, na fonte, as boas (e más) histórias que integram o cotidiano. Ignácio
de Loyola Brandão costuma (ou costumava) atravessar São Paulo (de ônibus
coletivo ou metrô) com caneta e caderneta de anotações, coletando narrativas – para
depois transformá-las em literatura.
Nesse caminhar
trôpego, alguns críticos rotulam a crônica como uma espécie de comentário datado
sobre algum acontecimento – que, se não fosse pelo registro fatual, acabaria
desaparecendo na sequência de eventos “maiores” que constituem a vida urbana. Em outras palavras, a crônica – uma forma
híbrida de literatura e jornalismo –, é um gênero “menor” e só existe para preencher
o espaço que não é utilizado com a notícia. Trocando em miúdos, um calhau, cujo
futuro é o embrulhar o peixe (ou coisa pior) no dia seguinte à sua publicação. Em
tempos de Internet, são páginas de blogs ou de sites e que raramente serão acessados
uma semana após a publicação.
A linguagem que a
crônica utiliza para se comunicar com o leitor transita entre o relato
coloquial e a prosa poética. Isso permite aventuras estilísticas que abrangem
desde a compreensão do mundo através do particular até o escracho monumental.
De fato, a crônica é aquele texto onde você pode soltar expressões como iabadabadu, aiou
Silver, o caralho a quatro ou fala, amendoeira no
meio da frase e ninguém vai reclamar do conteúdo – ao contrário, essas
situações humanas, demasiadamente humanas, possibilitam ao leitor o reencontro
com a ilusão, momento em que é possível acreditar que toda a sabedoria do mundo
estava contida nas sagradas páginas do Almanaque Sadol (Biotônico Fontoura e
Capivarol também valem).
Ivan Lessa |
Noves fora zero, uma
das delícias para quem gosta de se espichar no mundo, é ler boas histórias –
inclusive como uma forma de combater a cara feia daqueles que desconhecem a
sabedoria proposta por algum texto bonitinho, lido na manhã de domingo, entre o
café ruim e o bocejo desajeitado.
Que tal começar com
alguma crônica do Fernando Sabino? Não é preciso escolher, qualquer um dos seus
livros está repleto de quero mais, o cara sabia das coisas e
escrevia como se estivesse conversando com o leitor, aquela mistura de
sabedoria e bom humor que só os gênios conseguem reunir.
Ou Aldir Blanc e
Ivan Lessa? Aldir Blanc, náufrago de boleros e sambas-canções (Eu hoje me
embriagando / de uísque com guaraná / ouvi tua voz murmurando: / são dois pra
lá, dois pra cá), fez questão de colocar na lâmina do microscópio social a
verdadeira tragédia suburbana: churrasco no quintal, cerveja gelada, palavrões
e a sadia sacanagem com a vítima que estiver mais próxima. E, óbvio, um imenso
foda-se para o politicamente correto! Ivan Lessa é um pouco diferente: com um
texto mais aristocrático, nunca negou as raízes de quem nasceu em berço de ouro
e leu tudo antes dos vinte anos – na maturidade, olhando as ruínas, cospe sabedoria
nos menos aquinhoados.
Sergio Porto ou Stanislaw Ponte Preta |
Ou Antônio Maria e Stanislaw Ponte Preta? Nos textos dessa distinta dupla, as dores de corno são passageiras habituais do bonde que leva os cafundós do Judas até o lugar onde o diabo perdeu as botas. Nesse cenário fofo, não dá para evitar a parada obrigatória, algum boteco sórdido, onde, ao final da noite, muitos guerreiros tentam afogar as mágoas com martelinhos de pinga com mentruz, ou, se o sujeito ainda dispuser de alguma força, no corpo de alguma das certinhas do Lalau, verdadeiro bilhete de loteria premiado (aquele mesmo que tantas vezes ficou para trás, acenando promessas).
Também é possível ler alguma coisa do Luís
Fernando Veríssimo, prato cheio para quem gosta de humor pasteurizado,
revestido com o verniz intelectual pequeno-burguês, típico de quem - na
infância - sempre teve dinheiro para completar o álbum de figurinhas. Pelo
mesmo caminho segue um escritor de qualidade, apesar de faltar um pouco de
condimento em sua prosa: Rubem Braga. Esbanjando uma lírica que sempre defendeu
que o Rio de Janeiro é o umbigo do mundo, o ilustre cronista definitivamente
desconhecia o que significa morar em palafita, andar de pés descalços por não
ter dinheiro para comprar chinelo ou as delícias de roubar manga (como fez
tantas vezes o Carlos Heitor Cony, que, guardadas as devidas proporções, é
vinho de outra pipa, safra nobre, item de colecionador).
Na turma dos que não podem ser classificados em nenhuma categoria, exceto aquela que os designa, Machado de Assis ilumina o cenário com lampião de gás, bondes, fraques e sessões teatrais. O Império tinha charme (e usava essa característica para esconder as coisas más). Ninguém conseguiu produzir um retrato de época tão interessante quanto Machado de Assis.
Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira,
Mário Quintana e Paulo Mendes Campos
Há outros cronistas.
Claro que há. Um punhado de humoristas, um caminhão de trágicos. Uma seleção de craques poderia ser escalada assim: Carlos Drummond de
Andrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, José
Carlos de Oliveira, Roberto Drummond, Nelson Rodrigues, Lourenço Diaféria, João
Ubaldo Ribeiro, Raquel de Queiroz, Millor Fernandes. No banco de reservas: Raul
Drewnick, Maria Rita Kehl, João do Rio, Zuenir Ventura, Mário Prata, Marcelo Rubens Paiva,
Martha Medeiros e Antônio Prata, entre tantos outros.
Por essas e outras, muitas outras, só nos resta
lembrar Fernando Sabino, que, em momento ternurinha, parodiou um verso de Manuel
Bandeira, e escreveu que queria que as suas crônicas fossem puras como um
sorriso. Nunca me pareceu que estivesse pedindo algum absurdo.
Aldir Blanc |
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