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sexta-feira, 31 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXXI)



Tenho medo de Marcel Proust (1871-1922) e Karl Ove Knausgård (n. 1968). São escritores que, ao estabelecerem ligações com o passado, escreveram vários livros com 500, 600 páginas. Nesses formidáveis exercícios memorialísticos declaram que a concisão é ato inútil. As frases se estendem na direção ao infinito, umas emendadas nas outras por essas pontes que são as vírgulas, o pensamento fica flutuando, feito nuvem que invade o azul, reverberações de uma literatura que se projeta no espaço, elimina o tempo e desconstrói tudo, forjando o novo a partir das ruínas. 

Nem tudo é verdade. Nem tudo é mentira. Nem tudo é ficção. Nessa mistura, onde os papeis convencionais estão deslocados, autor e personagem fundidos em oração profana, um aceno aos deuses pagãos, cabe ao leitor aceitar que está pisando em areia movediça e que a qualquer descuido pode acontecer o inesperado – inclusive o tédio total.

Os livros, “A Procura do Tempo Perdido” (sete volumes) e “Minha Luta” (seis volumes), compõem a página inundada por tinta e sentimentos diversos e contraditórios, mistura de dor e alegria, e isso, de certa forma, fornece cansaço por tanta verborragia, parece que tudo o que precisa ser dito nunca chega ao fim. Talvez não tenha fim, tempestades de palavras, um jogo, onde as cartas são distribuídas aleatoriamente, blefes surgem sempre que for possível, confirmando que a literatura é trapaça, truques para apresentar no picadeiro do circo, e para quem não entendeu o básico, eles não perdem tempo e, sem qualquer rede de proteção, mostram que o equilibrismo é mórbido.

E lá se vai mais um dia, constelação de páginas esparramadas em leituras que não saciam essa sede por algo que ninguém consegue definir, não basta dizer que é fluído ou difuso ou amorfo ou líquido ou qualquer outro substantivo, tudo se revela esforço inútil porque ainda não inventaram palavras com tamanho poder de expressão.

Proust, diante das provas para correção, em lugar de procurar por erros ou fazer as mudanças necessárias, ignorava a tarefa e incluía mais texto, as frases sendo inseridas entre as linhas, uma necessidade de incluir mais e mais, porque a narrativa estava incompleta, ou melhor, ainda está incompleta, sempre há a possibilidade de acrescentar mais algum trecho, a imaginação não possui limites.

Knausgård ignorou a economia narrativa e, através das histórias familiares, produziu uma reflexão sobre a fragilidade humana. Quer diluir as fronteiras entre a memória e a invenção, como se fosse possível produzir algum projeto literário hibrido, a necessidade de recuperar o que acredita ter se perdido em histórias pessoais que não se realizaram. Sonhos não envelhecem e, em tom desafinado, voltam à tona, pronunciando abracadabras que deveriam ter ficado esquecidas.

Nos livros de Proust e Knausgård voltar um capítulo ou dois se faz necessário a todo instante, inevitável que algum sentido ou direção escape, fios soltos na tessitura textual, o leitor como garimpeiro de símbolos, significados e significantes, a algaravia construindo a Torre de Babel e mandando o bom senso para o Beleléu. 

Se o interesse for por histórias de amor, favor passar longe – é o que dizem em cada palavra do que escreveram.   





 


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