Minhas ligações com o sagrado são profanas.
No principio, era o verbo rezar que definia parte da história da minha família.
A Igreja Católica Apostólica Romana, representada pelo quadro do Sagrado
Coração de Jesus na parede da sala, unia todos em torno de algo comum. O terço,
as novenas, as procissões e a missa semanal eram partes do ritual.
Em algum momento da infância fiquei
doente. Não tenho a mínima ideia do que aconteceu. Minha mãe fez promessa a São
Bom Jesus de Iguape. Alguma coisa relacionada com levar algumas mechas do meu
cabelo para a sala de ex-votos na Basílica de Iguape, no litoral paulista. Eu devia
ter uns seis anos. Fui com meu pai. Creio que ficamos quase uma semana na
estrada e usamos os mais variados meios de transporte (caminhão, ônibus,
carroça e trem). Trouxemos várias pedrinhas de lá. Era costume colocar os
calhaus dentro de garrafas d’água. Diziam que beber desse líquido era bom para
curar várias doenças e prevenir outras tantas.
Os primeiros livros que li foram hagiografias (presente de uma das avós). Fiz curso de catecismo. Depois, Primeira Comunhão. Segui os protocolos da tradicional família católica brasileira, apesar de nunca ter roubado vinho da sacristia. No entanto, convém esclarecer, sempre detestei me confessar. Estou convicto de que os meus pecados não são para ser divididos com estranhos – se, em algum momento, tiver interesse em genuflexórios, vou procurar um psicanalista.
Na adolescência, me afastei do
catolicismo. As urgências da carne foram mais fortes do que o asceticismo. Jamais me
arrependi dessa decisão. Até porque o gozo compensou qualquer sentimento de
culpa que, por ventura, pudesse surgir no horizonte. Em 1976, uma de minhas irmãs,
ao ver que algo está fora de prumo, me sugeriu uma espécie de estrada para Damasco, ou seja,
me inscreveu em uma Jornada (que era uma espécie de doutrinação ideológica do
catolicismo). O truque não funcionou, inclusive porque, como complemento, naquelas
alturas do campeonato eu já tinha conseguido matar (no sentido freudiano) meu
pai – ou seja, não havia mais lugar para qualquer deus na minha vida.
Na sequência, Cronos devorou os dias e
Baco se estabeleceu como guru da esbórnia. Apesar de o Parnaso estar distante
dos olhos gulosos, aqui e ali acenaram em meu favor uma ou duas ninfas – nem sempre
as ideais, mas eu também não era exatamente um bilhete premiado da loteria. Comi a ambrosia
e me embriaguei na loucura que somente os corpos conseguem compreender. Foi
bom.
Muito tempo depois, como acontece com todos
aqueles que permitem as dúvidas, procurei por algum tipo de alternativa. Por
diversos motivos, que não cabem esclarecer neste momento, flertei com o budismo.
Na teoria, uma beleza; na prática, uma tristeza. Faltaram satoris, sobraram
confusões. A arte cavalheiresca do arqueiro zen não funcionou comigo. O vulcão
que carrego nas entranhas não simpatizou com meditações, mantras e elevação
espiritual. Mas, como Buda não deixa seus filhos desprotegidos, de vez em
quando surge pequenas recaídas, umas vontades de ser mais sereno, menos
colérico. Na medida do possível, costumo salvar aranhas, formigas, besouros e borboletas, defendo a
conservação da natureza e acredito que, em algum momento, o mal será punido.
Enfim, no que se refere à religião, convivo com a confusão, com as rupturas e as heresias.
P.S.: Minha mãe é adepta das religiões
de matriz africana e do espiritismo. Mas, isso é conversa para outro dia.
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