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domingo, 5 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XIV)


Templo Kinkaku-Ji (Kyoto, Japão)


Faz quatro dias que estou enclausurado. Só saio para receber a comida ou para levar o lixo até a lixeira do prédio. Volto o mais rápido possível e higienizo mãos e braços por incontáveis segundos, processo que se soma à rotina: lavar a louça, limpar o banheiro, varrer o apartamento, ler, escrever, beber água, ouvir música, ver algum filme, beber chá e ler todos os jornais que estão disponíveis na internet. Não necessariamente nessa ordem.

Para cumprir esse ritual faz-se necessária a paciência oriental. Infelizmente, por defeito de fábrica, falta-me serenidade e sobra-me ansiedade. Em alguns momentos, tento compensar as deficiências propondo uma teatralização. Sentado no chão, em posição de lótus, recito, incontáveis vezes, o mantra Om mani padme hum. Ainda não alcancei a iluminação. Como não quero acender o incenso de patchouli, talvez seja por isso que a mágica não está funcionando. Ou, em hipótese mais provável, Buda está atendendo outras preces.

Ontem teve sol. Depois de alguns dias plúmbeos, o céu se abriu e pude me instalar na sacada do apartamento. Coloquei cadeira na sombra e fiquei lendo Calvin & Hobbes. Foi divertido. Para mim. Para a vizinha do andar de cima, não sei. Percebi que uma cortina estava se movendo, como se alguém estivesse espiando. Nestes tempos sombrios, em que todos estão aterrorizados, talvez ela tenha ficado surpresa com o bobo que ria sem parar.


Acordo cedo todos os dias. Isso não está certo. Poderia ficar dormindo até o meio-dia – ou mais. Todos os compromissos foram adiados sine die, estamos vivendo um mês só de domingos (que John Updike me perdoe por essa citação infame). Independente da hora em que vou dormir, acordo lá pelas 6h30, 7h00. Uma fome absurda a me devorar e que exige suco, sanduíche, bolacha, iogurte. Não bebo café – só o tolero no Tiramissu.

Aos olhos de algumas pessoas, sou um enjoado. Recuso café, detesto maracujá e caqui, não como feijão e camarão. Evidentemente, outros itens integram o meu index prohibitorum particular – que é extenso e, provavelmente, ultrapassa umas dez páginas, espaço simples, fonte tamanho 12.

Essa postura alimentar restritiva costuma causar problemas insolúveis. O mais difícil de resolver se chama feijoada. Animal raro, daqueles que só existem na Austrália – é assim que sou visto por conhecidos e desconhecidos.  Ninguém acredita que não gosto do alimento que alegra dez entre dez artistas de cinema. Certa vez, por falta de opção, precisei almoçar arroz branco, couve e laranja. E nada mais. Foi patético.

Igual constrangimento ocorre com o camarão. Há quem faça mil perguntas, tentando entender o que há de errado comigo. Digo que não gosto do sabor, da textura, da aparência física do artrópode. No imaginário popular, parece impossível existir alguém que recusa – por livre e espontânea vontade – essa iguaria. Há quem considere a possibilidade de que quero chamar a atenção, ser diferente. Um amigo parafraseou a canção famosa: quem não gosta de camarão / Bom sujeito não é / É ruim da cabeça / Ou vive na contramão.


São percalços que me lembram o ensinamento de Guimarães Rosa, lá nas veredas do grande sertão: A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.      


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