Templo Kinkaku-Ji (Kyoto, Japão) |
Faz quatro dias que estou enclausurado.
Só saio para receber a comida ou para levar o lixo até a lixeira do prédio.
Volto o mais rápido possível e higienizo mãos e braços por incontáveis
segundos, processo que se soma à rotina: lavar a louça, limpar o banheiro, varrer
o apartamento, ler, escrever, beber água, ouvir música, ver algum filme, beber
chá e ler todos os jornais que estão disponíveis na internet. Não
necessariamente nessa ordem.
Para cumprir esse ritual faz-se
necessária a paciência oriental. Infelizmente, por defeito de fábrica, falta-me
serenidade e sobra-me ansiedade. Em alguns momentos, tento compensar as deficiências propondo
uma teatralização. Sentado no chão, em posição de lótus, recito, incontáveis vezes, o
mantra Om mani padme hum. Ainda não alcancei a iluminação. Como não quero
acender o incenso de patchouli, talvez seja por isso que a mágica não está funcionando. Ou, em hipótese
mais provável, Buda está atendendo outras preces.
Ontem teve sol. Depois de alguns dias
plúmbeos, o céu se abriu e pude me instalar na sacada do apartamento. Coloquei
cadeira na sombra e fiquei lendo Calvin & Hobbes. Foi divertido. Para mim.
Para a vizinha do andar de cima, não sei. Percebi que uma cortina estava se
movendo, como se alguém estivesse espiando. Nestes tempos sombrios, em que
todos estão aterrorizados, talvez ela tenha ficado surpresa com o bobo que ria
sem parar.
Acordo cedo todos os dias. Isso não está
certo. Poderia ficar dormindo até o meio-dia – ou mais. Todos os compromissos
foram adiados sine die, estamos vivendo um mês só de domingos (que John
Updike me perdoe por essa citação infame). Independente da hora em que vou
dormir, acordo lá pelas 6h30, 7h00. Uma fome absurda a me devorar e que exige suco,
sanduíche, bolacha, iogurte. Não bebo café – só o tolero no Tiramissu.
Aos olhos de algumas pessoas, sou um
enjoado. Recuso café, detesto maracujá e caqui, não como feijão e camarão.
Evidentemente, outros itens integram o meu index prohibitorum particular –
que é extenso e, provavelmente, ultrapassa umas dez páginas, espaço simples,
fonte tamanho 12.
Essa postura alimentar restritiva
costuma causar problemas insolúveis. O mais difícil de resolver se chama
feijoada. Animal raro, daqueles que só existem na Austrália – é assim que sou
visto por conhecidos e desconhecidos. Ninguém acredita que não gosto do alimento que
alegra dez entre dez artistas de cinema. Certa vez, por falta de opção,
precisei almoçar arroz branco, couve e laranja. E nada mais. Foi patético.
Igual constrangimento ocorre com o
camarão. Há quem faça mil perguntas, tentando entender o que há de errado
comigo. Digo que não gosto do sabor, da textura, da aparência física do
artrópode. No imaginário popular, parece impossível existir alguém que recusa –
por livre e espontânea vontade – essa iguaria. Há quem considere a
possibilidade de que quero chamar a atenção, ser diferente. Um amigo parafraseou
a canção famosa: quem não gosta de camarão / Bom sujeito não é / É ruim da
cabeça / Ou vive na contramão.
São percalços que me lembram o ensinamento
de Guimarães Rosa, lá nas veredas do grande sertão: A vida é assim: esquenta e
esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da
gente é coragem.
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