Será que tem remédio para curar meu tédio?
Será
que existe cura para toda essa loucura?
(Vicka: Pausa)
O dia passou rápido. No período da
manhã, lavei a louça, limpei o banheiro, separei o lixo, li os jornais na
Internet. Conversei com algumas pessoas pelo whatsapp, pedi comida pelo
telefone. Repetição monótona do aconteceu ontem, anteontem e nos dias
anteriores.
Depois do almoço, coloquei uma cadeira
na sacada e fiquei tomando banho de sol. Li uns dois capítulos de um romance de
ficção científica, joguei cerca de uma hora no celular. Quase dormi sentado. Levantei
algumas vezes, e, debruçado no parapeito, fiquei olhando para os carros que
passam rápido pela avenida.
Estou protegido. Infelizmente, algumas
pessoas não estão. Gostaria de saber notícias do Chico, um morador de rua que
foi meu “vizinho” quando residi no centro da cidade. Será que ele está bem? Não
tenho como saber. Em um mundo perfeito, o poder público teria acolhido os
sem-teto em algum abrigo. Estamos longe disso. Os marginais (com ou sem
Covid-19) continuam à margem da sociedade.
A voz de Chico é difícil de ser
entendida. Ele fala uma algaravia muito particular. Ao encontrá-lo, usualmente ofereço
uma cédula de R$ 2,00. Ele pega a nota e vai embora. Considero isso uma
vantagem. Ele não perde tempo agradecendo. Eu não preciso fingir que acredito
no discurso decorado que acompanha algumas pessoas que vivem em condição de
vulnerabilidade.
A única vez que Chico falou de forma
legível comigo foi em um final de tarde. Estava chovendo. Com o dinheiro na
mão, ele me disse, quase sussurrando: Já tinha desistido de beber a minha
cachacinha hoje.
Fiquei olhando-o se distanciar, envolto
pela garoa. Fiquei alegre por ele.
Essa história trouxe à tona outra, mais
antiga. Foi nos tempos do Marrocos. Estávamos sentados na mesa quatro, como
sempre, quando o sujeito entrou no bar. Sem perdeu tempo, com voz de locutor
esportivo, pediu dinheiro para comprar cachaça. Lembro que alguém (quem?)
rebateu a solicitação dizendo que isso não fazia sentido, onde é que se viu um
mendigo pedir dinheiro para comprar cachaça? E concluiu o discurso moralista:
se você quiser comer alguma coisa, eu pago.
O pedinte olhou para o sujeito e disse,
sem medir as palavras: Você é surdo? Eu pedi dinheiro pra cachaça, se eu
estivesse com fome, pediria dinheiro para comida, não estou com fome, eu quero
é cachaça.
Aquela postura merecia aplausos. Poucas vezes
na vida vi alguém enfrentar as agruras da vida com tamanho estilo e sinceridade.
Alguém (quem?) chamou o dono do bar e
pagou pela bebida. Duas doses. Depois de beber a cachaça, o homem foi embora.
Nunca mais o vimos.
Diariamente, o mundo nos revela seus
personagens – gente de carne e osso, que sangra e sofre, que ama e odeia. Alguns
deles são inesquecíveis. Basta abrir os olhos e ver. Ao lado dos bem-comportados, limpinhos e cheirosos, encontramos os excluídos, os outsiders, os
que escolheram viver de forma diferente da que recomenda os bons modos.
O segundo grupo raramente encontra carinho
e aceitação. O homem é o lobo do homem, dizia Thomas Hobbes (1588-1679). Difícil
discordar.
Belo texto. Realmente num lugar sério, não teríamos tanta gente invisível. Quando eu era criança,havia um homem que andava com uma lata e cantava músicas do Roberto Carlos. Uma noite ele sentou bem próximo de casa e cantou a madrugada inteira. Eu gostei da serenata!
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