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domingo, 26 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXV)




Alguns dos episódios mais significativos da minha vida pessoal estão relacionados com bibliotecas, livrarias, livros. Uma ligação umbilical. Talvez uma maldição. Sei lá. Muitas pessoas não entendem os sentimentos que envolvem as pessoas que acumulam livros. Esporadicamente alguém sugere os benefícios dos e-books, a praticidade do mundo virtual, as bibliotecas portáteis, uma nova era se desenhando no horizonte. Trato-os com cordialidade, embora, muitas vezes, não consiga evitar o uso do sarcasmo – que, infelizmente, passa despercebido pela vítima.  

Fui alfabetizado quando tinha seis anos. Algum tempo depois, em função da orientação católica apostólica romana de minha avó, ganhei umas duas ou três hagiografias (edições Paulinas) – esses volumes, que se perderam no tempo, constituem a gênese da minha biblioteca atual.

Não havia livros na casa de meus pais. Compreensível. A escolaridade dos dois era precária. Em compensação, lembro-me de vários exemplares dos almanaques Biotônico Fontoura, Sadol e Renascim. Muitas revistas: Sétimo Céu, Capricho, InTerValo, Burda. O verso do calendário descartável (folhinha) também oferecia material variado de entretenimento: tempo de plantio, orações, charadas, curiosidades.

Foi o ingresso na escola pública que abriu espaço para os livros começarem a ter visibilidade na história familiar. Fiz centenas de empréstimos na biblioteca do Centro Educacional Vidal Ramos Júnior. Esgotado o acervo, migrei para a Biblioteca Pública, que ficava na Rua Nereu Ramos (em um sobrado que não existe mais). Foi lá que conheci Arthur Conan Doyle, Karl May e Emílio Salgari, talvez os escritores mais importantes da minha adolescência. Mais tarde a Biblioteca Pública mudou de endereço – eu fui junto.


Nos anos 80, a situação econômica familiar se modificou e aquelas edições da Tecnoprint e da Abril Cultural, que formaram os primeiros itens da minha biblioteca pessoal, começaram a ganhar a companhia de livros de melhor qualidade. A pessoa mais importante desse período foi dona Maria Josefina Rath de Oliveira, proprietária de A Sua Livraria, que me garantiu crédito ilimitado – essa relação perdurou até o dia que a livraria fechou as portas, em 2009. Qualquer agradecimento por tamanha generosidade nunca será suficiente.

Nessas memórias desencontradas cabe destacar um dos espantos que tive em São Paulo (1980 ou 1981): um sebo vendia livros por quilo! Comprei algumas caixas e as despachei pelo correio. Nunca mais encontrei algo parecido.

Outro episódio interessante ocorreu no final dos anos 90, quando morei por um período nos Ingleses, norte de Florianópolis. Ao ver uma citação do Raymond Williams, imaginei que precisava acrescentar aquele texto à bibliografia da Dissertação que estava escrevendo. Não tinha exemplar do livro na biblioteca da UFSC. Procurei por Marxismo e Literatura por toda a cidade. Em determinado momento, alguma alma bondosa me disse que deveria procurar na Livraria Lunardelli. Argumentei que isso era impossível, a livraria não existia mais. Esqueça isso, bata na porta, sempre tem alguém trabalhando, foi o que ouvi. Em um final de tarde de janeiro, atravessei a cidade e fui “campear” o livro. Fui recebido de forma pouco amigável, a pessoa que me atendeu não era um exemplo de simpatia e pediu para que voltasse uma semana depois, quem sabe tivessem, iria verificar. Apesar das dificuldades e das distâncias, voltei na data acordada. O livro estava lá, mas... envolto em camadas de pó e... a lombada não estava intacta. Perguntei o preço. Uma fortuna – para a época, para um estudante que vivia de bolsa do CAPES. Paguei, sabendo que estava sacrificando alguns almoços. Ainda o tenho.


Há outras histórias, há outras confusões. Do período em que fui estudante da UFSC, dois livros se destacam. O exemplar de Nação e Consciência Social, do Benedict Anderson, que emprestei para não sei quem e nunca mais vi, e a edição comentada de Alice no País das Maravilhas, do Lewis Carroll, que está aqui na minha frente e que sempre releio.

Com e-books jamais teria histórias para contar, para me lembrar daquele que fui e que agora olha para um tempo que não se esgotou – porque está vivo na memória.

Um comentário:

  1. Que interessante esta retrospectiva de sua vida de leitor. Também já fiz a minha, só não lembro onde publiquei. abraços pandemônicos

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