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sábado, 18 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXVII)




A suave monotonia da quarentena que envolve a minha vida foi rompida quando percebi algumas manchas no chão da cozinha. Devo ter derrubado alguma coisa gosmenta. O quê? Não sei. Quando? Desconheço.  Pode ser que já estivessem ali ontem ou em outro dia qualquer. Não importa. O que há de relevante é que resolvi limpar o assoalho.

Deve ser uma tarefa fácil, pensei. Basta usar o rodo envolto em pano molhado. Qualquer um pode fazer isso em um piscar de olhos. Só preciso descobrir onde está o rodo. Provavelmente está dentro do armário das vassouras.

Surpreso, descubro que não tenho armário das vassouras. Como é que isso é possível, meu São Bom Jesus de Iguape? Em qualquer filme hollywoodiano o armário está localizado naquele espaço quase inútil que fica embaixo da escada, onde se escondem as tralhas – eventualmente, algum cadáver. Até nos filmes do Harry Potter há um desses compartimentos, onde os parentes malvados exilavam o menino nos primeiros filmes da série.


Além de não ter armário, percebo que também não tenho escadas dentro do apartamento. Somando dois mais dois, concluo que sou um prejudicado arquitetonicamente.

Pensei em ligar para a minha ilustre assistente para assuntos de limpeza doméstica (AALD) e perguntar onde ela escondeu o rodo. Não fiz isso. Há vexames que um homem precisa evitar. Imaginei a gargalhada que ouviria no telefone, ela dizendo: Raul, você não têm jeito, continua um trapalhão. Pois é, pensando bem, trapalhão deve ser elogio diante da minha falta de habilidade com os serviços domésticos.

Onde está o rodo, as vassouras e os demais equipamentos de limpeza? Uma das vassouras está no escritório, lembro que varri uns farelos de croissant que estavam debaixo da mesa. Então tá, a vassoura está visível. O problema é que não quero a vassoura, quero é o rodo. Estou perdido. Será que vou precisar de mapa, bússola, sextante ou astrolábio para encontrar esse simulacro do Santo Graal?


Mistério resolvido. Encontrei o desaparecido. Estava na área de serviço, que é aquela parte deserta do apartamento. Ninguém vai lá, exceto, óbvio, a incrível AALD. No caminho, incluí no pacote de limpeza um balde e alguns panos de chão. Fiquei contente. Ter achado todas essas coisas é quase como ganhar na loteria. Não. Isso é um exagero. Mais modesto é ganhar no jogo do bicho. Isso. Apostei uns trocados e acertei o milhar. Vale o que está escrito.

Na cozinha, molhei o pano com um pouco de água, enrolei no rodo e comecei a limpar o chão. Trabalho braçal, coisa de operário. As manchas desapareceram. Todas? Não, só as mais visíveis. Amanhã ou depois retomo a tarefa. Falta-me prática e paciência. Espero, com o tempo, adquirir essas duas virtudes teologais. Ou não – como dizia aquele antigo compositor baiano, afinal tudo é divino, tudo é maravilhoso. 

O que fica disso tudo é que  quando essa maluquice de quarentena acabar  precisarei aumentar o salário da minha magnífica AALD.

Feito o serviço, limpei o pano e o coloquei para secar. Devolvi o rodo e o balde para os seus legítimos lugares de origem. Suspirei longamente. Mas esse suspiro não teve motivação na sensação de dever cumprido, mais um sucesso na jornada do herói. Tampouco foi porque a vida tinha me ensinado outra lição. Nada disso. O suspiro tinha endereço: a pia repleta de louça para lavar.

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