Vaso ruim não quebra, dizia minha avó,
em um daqueles momentos de sabedoria popular que a fizeram famosa (em nossa
família). Se não estou enganado, ninguém jamais ousou contestar essa afirmação,
seja porque respeitávamos a autoridade matriarcal, seja porque todos os vasos
lá em casa eram bons – e vários se espatifaram no chão.
Nestes tempos sombrios em que estamos
vivendo, lembrar da figura forte que estava abrigada em corpo frágil,
pessimista em teoria e otimista na prática, faz bem para a (minha) saúde.
Por um desses desacertos da vida, só
consegui localizar uma foto antiga, recordação minguada: Dona Henriqueta Araújo
Arruda Guimarães segura o braço de seu esposo, Silvano Guimarães – um derrame o
deixou por muitos anos com o lado esquerdo paralisado. Quem terá recortado a
imagem do casal de um contexto maior? O que foi suprimido? Não encontro
resposta para esses questionamentos. Preciso consultar minhas irmãs para tentar
resolver o mistério.
“Tia Quêta” era uma defensora radical do
catolicismo. Próxima do fanatismo religioso, rezava o terço todos os dias, no
final da tarde! Era uma enxurrada de Ave Marias, Pai Nossos e Salve Rainhas. As
contas do rosário passeando por aqueles dedos magros.
Confesso que detestava aquele fervor.
Preferia ler ou ver televisão. Por isso, na adolescência, quando a visitava, costumava
apresentar alguma desculpa para ir embora antes da reza. Nem sempre funcionava.
Diversas vezes fui avisado que Deus não perdoava “alguns pecados”, o tom de voz
destacando o desagrado com a minha falta de fé. Na sala, uma gravura do Sagrado
Coração de Jesus sangrando não aliviava a situação.
Durante o dia, minha avó era uma pessoa “normal”
(seja lá o que isso for!), sempre atenciosa com os netos, adorava ter companhia
no “café com mistura” das quatro da tarde. Mesa farta (pão feito em casa,
sequilhos, bijajica, bolachas variadas, queijo, geleias). Um item se destacava
no meio de tantas variedades: as roscas de coalhada, especialidade da anfitriã.
Nunca mais encontrei aquele sabor, aquela textura.
Dominando a memória familiar, contava
causos de outros tempos. Curiosidades sobre a vida rural, as plantações e suas
variações sazonais, os bailes de antigamente, quem casou com quem e porque fez
isso, a alegria de receber a visita dos vizinhos, dos mascates, do professor
itinerante. Muitas vezes não prestei atenção naquelas narrações. Distração que
agora cobra o seu preço, queria recordar algumas dessas histórias e não
consigo.
Minha maior dívida com “Tia Quêta” jamais
poderá ser paga. Quando tinha cinco, seis anos, passei uma temporada com eles, lá em
Morrinhos, coração da Coxilha Rica. Professora de catequese na Igreja de São
Sebastião, minha avó concluiu que não podia ensinar a palavra de Deus para uma
criança que não soubesse ler e escrever. Então, nas horas vagas e com auxilio
de uma velha cartilha fui aprendendo que “b” mais “a” é igual a “ba” e que a
soma das letras resulta em palavras e frases. E que essas ferramentas podem ser
usadas para defender ideias.
Quando voltei a morar com meus pais, já
estava alfabetizado.
Depois de todos esses anos, tantas
trapalhadas encenadas, aplaudidas e vaiadas pelo distinto público, não me resta
outra opção senão concordar com Dona Henriqueta: somos todos vasos ruins!
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