Minhas relações com José Rubem Fonseca
(1925-2020) nunca foram pacíficas. Alimento uma profunda reverência pelos
contos iniciais e desprezo solenemente os últimos livros. Inclusive, escrevi algumas resenhas ácidas, espinafrando o cara, sugerindo que ele deveria se aposentar e ir cuidar dos netos. Contraditoriamente, um
olhar rápido pela minha biblioteca serve para confirmar aquilo que não consigo negar:
tenho quase todos os livros que ele escreveu.
Com um estilo seco, centrado em diálogos
e ação, Rubem Fonseca conseguiu dar um nó na literatura brasileira. Conduzindo
os seus personagens por espaços geográficos pouco explorados pelo cânone, Fonseca
fez da violência urbana o seu corpus literário. E isso significa que ajudou a
destruir o mito de que as narrativas devem ser suporte para histórias de amor (e
que terminam, preferencialmente, em final feliz).
No embate bárbaro, muitas vezes
desproporcional, que existe entre os valores materiais e a carência socioeconômica
de parte da população, a estrutura politica (através de seu braço armado, a
polícia) sempre age em defensa das classes que detém os meios de produção. E
essa dissintonia entre a imagem projetada nos comerciais de televisão e a falta
de pão na mesa deságua na crueldade, na falta de compaixão, no desespero.
Em alguns momentos, os contos de Rubem
Fonseca são superiores a dezenas de tratados sociológicos e antropológicos. Também servem para estudos no campo da linguística, terreno em que o uso da linguagem coloquial se impõe com particular habilidade.
No conto O Cobrador, o narrador
enumera as dívidas que estão pendentes: Estão me devendo comida, buceta,
cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Cabe a
ele “cobrar” o que, de uma maneira ou de outra, ele acredita que lhe foi
subtraído. A sequência de atrocidades referenda o tomar pela força o que ele não
conseguiu obter outra maneira.
Em outro conto, Feliz Ano Novo, a
violência também se manifesta em ritmo de cobrança. Entre o saciar a fome com
os restos de um despacho de macumba e invadir a festa dos ricos, a segunda
possibilidade se concretiza. São personagens que não se importam mais com a sociedade,
porque compreenderam – da forma mais horrível possível – que a concentração de
riqueza equivale à carência de parte da população. E eles estão no lado oposto ao dos estão festejando a passagem do ano. Sem o que perder – porque foram transformados em zumbis –, somente o excesso consegue
saciar a fúria.
Uma característica que incomoda em parte
da obra de Rubem Fonseca é a obsessão pelo detalhe. Se uma faca entra em cena,
o narrador dá uma aula de cutelaria. O mesmo vale para revólveres, venenos,
armadilhas, charutos, etc. Nesses momentos, as descrições se impõem e falta concisão,
falta perceber que o leitor quer avançar na narrativa.
Em vários momentos, Rubem Fonseca se
arriscou em textos mais longos. Romances como A Grande Arte (1983), Bufo
& Spallanzani (1986), Vastas emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988) e Agosto (1990) são importantes para consolidar a sua carreira literária. Alguns deles
foram adaptados para o cinema.
Infelizmente, os livros seguintes não
carregam a mesma força. O veio se exauriu. A exceção está nas narrativas em que
o protagonista é o detetive Mandrake, onde o fôlego se renova.
A morte de José Rubem Fonseca, aos 94
anos, encerra um ciclo literário. Ao mesmo tempo, abre as portas para novas
experiências, para outras formas de descrever a violência urbana.
Le roi est mort, vive le roi!
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