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domingo, 19 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXVIII)




Um dos grandes problemas de quem precisa escrever com frequência está em encontrar algum assunto novo e que este seja capaz de despertar a atenção do leitor. Nem sempre isso é possível. Há quem diga que deu branco ou que as turbinas da criatividade foram desligadas temporariamente. Desculpas – e que surgem nas mais variadas versões. Nenhuma convence, mesmo quando verdadeiras. Na arena do entretenimento, os espectadores querem ver sangue, muito sangue – com destaque para aqueles momentos Tarantino, quando não há economia de catchup.

A felicidade é uma suave falta de assunto, escreveu Rubem Braga. Há quem discorde, principalmente se o dead line estiver mordendo no calcanhar. Dead line é uma expressão do jornalismo e significa – em português castiço – desespero. Prazo final é apenas um sinônimo. E nem é o mais importante.

A saborosa arte de enrolar o leitor, também chamada de conversa fiada ou encher linguiça, costuma ser um momento problemático na vida de um escritor. O usual é encontrar um tema qualquer e improvisar – mesmo que o produto final não seja, digamos, uma Brastemp.

Da esquerda para a direita: Paulo Mendes Campos, Rubem Braga,
Fernando Sabino, José Carlos de Oliveira.
Sentados: Vinicius de Moraes e Sergio Porto.  

Nos casos em que a aflição por cumprir algum prazo costuma causar gastrite e úlcera nervosa, há mil histórias. Uma das mais famosas foi protagonizada, salvo engano, por Fernando Sabino e Rubem Braga. O mineiro, em estado de total desalento, pediu (rogou, suplicou) para o capixaba uma crônica emprestada. Queria um texto pouco conhecido. Fez uma revisão básica, trocou palavras e acrescentou alguns detalhes. Com outro título, publicou como se sua a crônica fosse. Algum tempo depois, a situação se inverteu e foi a vez de Rubem pedir (rogar, suplicar) por auxílio. Recebeu de volta o material que havia emprestado para Sabino. Fizeram-se as devidas adaptações, inclusive um novo título, e o leitor foi enganado outra vez. Monsieur Antoine Lavoisier provavelmente aplaudiria esse notável exemplo de aplicação prática para sua lei mais famosa: Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

Para muitos cronistas, a habilidade de escrever sobre o nada se resume na aplicação de uma fórmula. Joaquim Maria Machado de Assis também padeceu desse mal. Em crônica de janeiro de 1862, no Diário do Rio de Janeiro, entregou os pontos: Acho-me sinceramente vexado quando apareço de alforge (sic) vazio, e mais vazia a alma, de com que entreter os ócios do leitor. E, para não perder o bonde ou o tílburi, empilhou substantivos e adjetivos. Com destreza, construiu outro castelo de areia.

O contista e cronista Marcelo Moutinho acrescentou outro ponto de vista ao tema. Ele entende que, em alguns casos, a falta de assunto se resolve com o drible da vaca (bola vai para um lado, jogador corre pelo outro, o adversário fica sem saber o que está acontecendo). É um truque interessante, que exige agilidade e jogo de corpo. Mas... Nem todo jogo termina com a consagração do craque. Muito zagueiro de qualidade entregou o ouro para o bandido em situação similar.


Enfim, escrever para entreter, ou se entreter, é arte misteriosa. Em vários casos a sua relevância é igual à zero. Em outros tantos, faz a diferença, vá lá, alguma diferença. No geral, a vida (e a literatura) não passa de uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada, como disse o bardo inglês – se é que ele disse isso.

Amanhã há de ser outro dia! 

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