A vantagem das lives é que podem ser
vistas post mortem. A taxidermização do mundo virtual transformou-se em algo
natural. Há quem diga que a imortalidade está (ou estará) ao alcance dos
recursos tecnológicos.
Por diversos motivos perdi parte do
festival de literatura brasileira Na Janela, promovido pela Companhia das
Letras, nos dias 24, 25 e 26 de maio. Bastou ir ao canal da editora, no YouTube,
e rever as entrevistas perdidas. Lá estavam os escritores e os mediadores com o
frescor do dia da realização da live.
No Instagram, os eventos podem ser vistos – no máximo – por vinte e quatro horas. Isso não é obstáculo. Quase todas as lives são salvas e exibidas, ad æternum, em outros canais.
O que chama a atenção na frase anterior
é que o uso das palavras live, salvas e ad æternum na mesma frase possibilita
um choque linguístico e semântico. Mas poucas pessoas percebem isso. Baseadas
na proposição de que a comunicação precede às normas gramaticais, essa mistura
de inglês, português e latim não desperta a mínima curiosidade no dia a dia.
Vivemos um samba do crioulo doido de original sabor.
Não bastasse isso, alguém pode alegar
que – etimologicamente – não há nenhuma confusão, o inglês também possui fortes
raízes latinas. Somos primos, se é que se pode dizer. Então, se estamos em
família, que mal pode haver?
Quanto a xenofobia se manifesta e faz
discursos histéricos contra o uso descontrolado de expressões alienígenas,
cabe recordar que o português falado no Brasil (em Portugal não é muito
diferente) é um dialeto vivo, híbrido, e que sempre se mostrou receptiva aos
acréscimos. Impossível esquecer as inúmeras contribuições do árabe, das línguas
e dialetos africanos (iorubá ou nagô, quimbundo, banto), dos idiomas e dialetos
indígenas (os mais importantes agrupados nos troncos linguísticos tupi-guarani
e macro-jê), do francês (que era très chic na corte imperial), etc. Em menor
escala, e regionalizadas, encontramos palavras de origem alemã, italiana,
japonesa, polonesa e holandesa.
Policarpo Quaresma, o divertido
personagem criado por Lima Barreto, morreu sem entender o básico. Esporadicamente,
o seu fantasma reaparece e, no Congresso Nacional, propõe algum projeto para
restaurar a “pureza” da língua. Acaba “dando com os burros n’água”, mas isso
não é impedimento para que, em outra oportunidade, nova tentativa seja feita.
Duas questões incomodam bastante. O uso da
palavra live em substituição da expressão ao vivo (que mostra a influência do
colonialismo cultural) e o uso de salvar nesse contexto. Independente do
preciosismo, salvar se refere a algo que se livra do perigo, da ruína ou da
perda total. Também pode significar, segundo o Aurelião, conservar, guardar,
manter. Não estou convencido que o termo seja o adequado em relação às lives,
porque confere aos eventos uma estrutura física que obviamente não possuem.
Mas, como se sabe, o uso consagra o significado. O que hoje parece anacrônico,
amanhã pode ser apropriado. E segue o baile, como se diz no sul no Brasil.
(P.S.: Pretendia comentar algumas lives que assisti nos últimos dias. O texto acabou tomando rumo inesperado e, quando percebi,
estava longe do destino inicial. Acontece.)
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