Páginas

terça-feira, 14 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXIII)





Acordei durante a madrugada. Estava chovendo. Quatro da manhã. Fui até a cozinha. Tomei um pouco de água mineral. Comi um cacho de uvas. Perdi o sono. Voltei para a cama. Li durante uma hora, talvez menos. Os olhos pesaram, voltei a dormir. Tive um sonho maluco, desses em que episódios familiares desconexos aparecem para perturbar quem está quieto. Coloquei essas imagens na conta da quarentena.

Eu era adolescente e morava com meu pai. Uma família enorme residia lá no final da Rua Princesa Isabel. Havia um boato de que eles eram um bando de maconheiros (uma ofensa indefensável na época). O bom senso recomendava evitar aquele canto do bairro. Em frente da casa tinha uma árvore frondosa, onde eles estendiam uma rede, sempre tinha alguém aproveitando a sombra e a música. Ligada em volume médio, a vitrola portátil alternava Pink Floyd (The Dark Side of the Moon) e Rick Wakeman (Journey to the Centre of the Earth). Eu costumava ir lá, ia trocar gibis, conversar sobre literatura, música, poesia. Nunca me ofereceram um baseado.



Minha mãe voltou de Curitiba e fui morar com ela. Era diferente. Muita risada, a televisão ligada em alto volume. As constantes mudanças de endereço me ensinaram que tudo é transitório. Gostava de me esconder na Biblioteca Pública, onde havia silêncio, onde os pensamentos não eram atropelados pela multidão que entrava e saia do local onde provisoriamente estávamos residindo.

Meu avô faleceu e ganhamos uma pequena herança. Fomos morar em lugar melhor. Meu irmão quase nunca estava em casa. Na sala, enquanto lia e escrevia, podia ouvir Domenico Scarlatti, Gustav Mahler, Charlie Parker, Billie Holiday. Minha mãe se incomodava com aquelas músicas que não foram feitas para dançar.



Fui para São Paulo. Tinha fome. Vários tipos de fome. Gastei um pouco da herança com shows de jazz, espetáculos teatrais, sessões de cinema, almoços e jantares em restaurantes. Livros, muitos livros. As fraquezas da carne sendo descobertas em inferninhos. Foi uma escola. Curso intensivo. Todo dia/noite uma lição diferente.

Voltei. Voltei para o colégio. Período noturno. Terminei o segundo grau com certa dificuldade. Não fui aluno assíduo. Próximo do colégio tinha um bar, Cisne Branco. Beber cerveja e conversar com os amigos era mais interessante.



Estava voltando para casa. Meio da madrugada. Vi o incêndio. Na mesma quadra onde estávamos morando. Uma fábrica de esquadrias. A fumaça era intensa. Acordei minha mãe e pedi para ela olhar pela janela. Podia ser ilusão de quem estava bêbado. Não era. O incêndio existia. Por algum motivo, não lembro qual, o nosso telefone estava desligado. Tive que acordar o vizinho. Chamamos os bombeiros. Só fui dormir na tarde seguinte.

Um dia. Meu irmão foi embora. Serviço militar na Aeronáutica. Minha mãe foi morar em Brasília. Minhas irmãs já estavam espalhadas pelo mundo. Uma em Cuiabá, outra em Curitiba. Meu pai foi corroído por um câncer agressivo.  

Muitas dessas lembranças estão enevoadas. Tenho dificuldade em distinguir o que aconteceu e o que inventei. Tudo é sonho.


Nenhum comentário:

Postar um comentário