Meu pai nasceu ontem. Por ontem quero
dizer 21 de abril de 1932. Faleceu quando tinha 57 anos, em uma dessas manhãs
plúmbeas de dezembro, quase garoando, o frio entrando nos ossos. Câncer. Nem morfina
conseguia diminuir as dores. Os dois maços diários de Continental sem
filtro e as incontáveis doses de conhaque Dreher contribuíram para esse
desfecho.
Eu estava na Prefeitura quando me
avisaram. Queria continuar trabalhando – o chefe da repartição impediu, me
mandou ir ao velório. Não derramei uma lágrima sequer. Fui ao enterro, no final
da tarde, com o propósito de me despedir de um conhecido, alguém com quem não
temos muita intimidade. Só percebi a extensão da perda alguns meses depois, quando,
para usar uma metáfora fora de moda, encostei em algum fio desencapado. O colapso
emocional durou algumas horas. Exercício de contrição tardio. A impossibilidade
de recuperar os laços de sangue. Poderia dizer que superei a crise com terapia,
remédios, aditivos químicos, exercícios físicos, adesão ao budismo, essas
coisas todas que parecem propicias nas horas de desespero, fórmulas mágicas da
modernidade, mas a verdade é que nada disso aconteceu. Enxuguei o rosto, deixei
os fantasmas na escuridão, segui em frente.
Tenho poucas lembranças. A maioria da
infância e da pré-adolescência. Depois disso, um imenso vazio. Seguimos por
caminhos diferentes. Construímos distâncias.
Vejo-o dirigindo o Chevrolet. Vejo-o
matando, a tiro de espingarda, o cachorro que contraiu raiva. Uma vez fomos para
Morrinhos, lá na Coxilha Rica, e ele reclamou o tempo todo por ter que conduzir
o jeep. Não nasci para dirigir caixa de fósforo, dizia com incontrolável repulsa. Vejo-o
mil vezes acendendo o cigarro. Vejo-o batendo com cinta nos filhos. Vejo-o
trazendo para casa, dentro de uma caixa de sapato, um gato amarelo
recém-nascido e que foi batizado com nome enigmático: Babinót. Vejo-o
brigando com minha mãe – os vizinhos chamando a polícia para acalmar a situação.
Quando as coisas se esfacelaram
totalmente, ele não teve maturidade psíquica de juntar os pedaços que sobraram
ou para perceber qual era a sua parcela de culpa naquilo tudo. Preferiu se
retrair, fazer pose de marido abandonado. Aumentou as doses de álcool, buscou
abrigo com um dos irmãos (que também era alcoólatra). Terminou tendo que viver
na companhia da mãe – uma pessoa rancorosa (e que era, na falta de expressão
mais adequada, detestada por mim e por meus irmãos).
O resto é decadência. Não vale recordar
o horror.
Raramente ia visitá-lo – em casa ou no
hospital. Uma das vezes fui a contragosto. Um amigo, médico, estava de plantão e
me chamou para resolver detalhes de um projeto que estávamos desenvolvendo. Era
uma armadilha. Quando percebi, estava diante daquele
que um dia chamei de pai. Deitado em cama da enfermaria, quase irreconhecível,
seus olhos anunciavam a morte. Não lembro o que conversamos, foi pouca coisa,
nada muito significativo. Sequer houve aperto de mãos. Fugi daquele lugar o
mais rápido possível.
Nas fotografias amareladas pelo tempo há outra pessoa. Não é aquele que conheci.
A vida costuma acenar com possibilidades que nunca se concretizam.
A vida costuma acenar com possibilidades que nunca se concretizam.
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