Há livros espalhados por quase todas as
peças do apartamento. Poderia dizer que moro em uma biblioteca. Ou que a
biblioteca mora em mim. Qualquer uma dessas duas versões está correta.
No apartamento anterior faltava espaço.
Minha mãe, quando ia me visitar, olhava para aquele oceano de papel e suspirava
fundo, sem acreditar no que estava vendo. Sempre repetia que tudo aquilo (os
livros, o esforço acadêmico) era um desperdício de tempo e dinheiro. E fazia questão
de pontuar: toda família têm um maluco; na nossa, é você. Não tenho certeza se
isso era uma ofensa ou um elogio.
Passei parte significativa de minha
adolescência na Biblioteca Pública de Lages. O olhar guloso passeava por
enciclopédias, romances, poesia, ensaios. Naquele lugar montei o meu primeiro
escritório – e isso me permitiu uma vantagem: nunca precisei levar as tarefas
da escola para casa. As bases da minha educação escolar e literária foram
construídas lá. Simultaneamente, quase me transformei em sombra pálida do
Autodidata, personagem de A Náusea (Jean-Paul Sartre).
Com o tempo, fui construindo a minha
própria biblioteca. No tempo das vacas magras, comprava uns volumes baratos da
Tecnoprint e das Edições de Ouro, adaptações dos clássicos, traduções ruins.
Depois, comecei a gastar o dinheiro do lanche com a coleção Grandes Sucessos, da
Abril Cultural. Comprava em banca de jornal, cada quinze dias um título novo. Ainda
tenho lembranças sentimentais de Horizonte Perdido (James Hilton), O Espião
que Saiu do Frio (John Le Carré), O Salário do Medo (Georges Arnaud) e O
Americano Tranquilo (Graham Greene), entre tantos outros livros que me
afastaram do mundo real e me mostraram que existe um tipo muito especial de
beleza e deslumbramento.
Um momento único no meu apego ao mundo
literário ocorreu na metade dos anos 80. Embora fosse cliente de A Sua
Livraria, comprava pouco, nunca tinha dinheiro para nada. Um dia, Dona Maria Josefina
Rath de Oliveira me disse a frase mágica: você tem crédito na casa, leve
o que quiser e pague quando puder. Não acreditei, parecia sonho ou alucinação.
Nunca fui um bom pagador. Mas, a
partir desse instante, comecei a acumular edições de melhor qualidade. Se
não havia exemplar na loja, encomendava. Demorava uma eternidade para chegar. E
quando estava com o livro na mão, lia com a mesma voracidade de quem, perdido
no deserto, encontrava um copo d’água.
No meu imaginário, os livros são objetos
de sedução. Adoro o cheiro de livro novo (bibliosmia). Fico excitado com o barulho do
folhear das páginas. A textura do papel promete (e entrega!) carícias
inimagináveis. Livros de capa dura são fetiches para os bibliófilos. A embriaguez
provocada por uma boa história (ou por uma reflexão inteligente) jamais
resultou em ressaca. A literatura não decepciona – jamais fui capaz de dizer o
mesmo sobre o mundo dos seres de sangue, carne e osso.
Sem os livros, a quarentena seria uma
prisão.
O meu projeto de paraíso estaria
completo com um jardim e um gato vira-latas (Felis silvestres catus). Como ainda
não tenho intensão de morar em uma casa, vou adiando, por enquanto, esses dois
acréscimos à felicidade.
Ah, que felicidade. Livros são verdadeiros companheiros e amigos.
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