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quinta-feira, 3 de março de 2011

"DOUTORA" LÉLIA


            Estava olhando os livros expostos nas prateleiras de “A sua livraria” quando ela me entregou um pacote e, com tom de voz áspero, parecendo estar brava, me disse: “Papai Noel deixou para você”. Agradeci, pedi desculpas por não poder retribuir naquele instante a gentileza, e abri o embrulho: lâminas de barbear, creme de barbear, loção após barba.  
            Engoli em seco, agradeci mais uma vez, e voltei a olhar os livros. Pelo canto dos olhos pude perceber que ela, às minhas costas, estava prestes a soltar uma gargalhada. Toda aquela encenação era mais uma etapa no esforço para eliminar a minha barba. Fã de carteirinha de Fernando Henrique e Ruth Cardoso, “a doutora” (era assim que eu a chamava) tinha verdadeira aversão ao Partido dos Trabalhadores e ao casal presidencial, Luis Inácio e Marisa – e, nesses termos, a "doutora" interpretava a minha barba como um atestado ideológico.
            Uns dois meses depois, um amigo – que estava de aniversário – ganhou o “kit anti-Lula”. Quando contei para a “doutora” que havia enviado, junto com o presente, um cartão em nome de nós dois, ela me olhou fixamente e, balançou a cabeça, como que a dizer: “Esse menino não tem jeito!”.
            Ela também não tinha jeito. Às vezes almoçávamos juntos, o que nos possibilitou muitas conversas sobre os tempos de antigamente, sobre livros e sobre as trapalhadas do governo Lula. Várias vezes, empolgado pela conversa ou pela comida, me descuidei. E isso sempre significou o desaparecimento da conta. Enquanto, feito um tolo, procurava pelo papel (embaixo da mesa, nos bolsos,...), ela se levantava e, no caixa, efetuava o pagamento. Fazia questão de repetir essa travessura, apesar dos meus protestos. Um dia, dei-lhe o troco. Esperei o momento adequado, roubei a conta, paguei. Ao perceber o que havia acontecido, ela ficou zangada. Durante uma semana não falou comigo. Ou seja, como um aluno relapso, desses que possuem dificuldades de aprendizado, fiquei de castigo.
            Menos de um ano atrás, a advogada que ofereceu, sorrindo, proteção jurídica ao meu filho, caso eu exagerasse na repressão paterna, pediu-me cópia de alguns textos que escrevi para a Universidade Federal. Entre aqueles que selecionei, incluí, propositalmente, os que escrevi para o “Fazendo Gênero”, que é um encontro internacional de discussões sobre políticas femininas, comportamento e sexualidade. Alguns dias depois, ao encontrá-la, ela fez um comentário que ainda hoje me parece um elogio: “Estou lendo – mas estou muito assustada!”.

Sei que essas histórias não possuem importância e tampouco conseguem sintetizar uma vida. No entanto, é com essas migalhas da memória, e o coração cheio de saudades, que lembrarei da "doutora".




Um comentário:

  1. histórias com H me encantam... Podem não ser vidas completas porém, são partes de vidas, de relacionamentos, de memorias do coração. Obrigado amigo.

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