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quarta-feira, 30 de março de 2011

GELADEIRAS E PRECONCEITOS

 O que distingue um homem de um rato? Muitas coisas, dirão os cartesianos. Sim, concordo. Mas, na essência, o que é que realmente faz toda a diferença? Caráter, arriscarão alguns. Inteligência, dirão outros. Nesse ritmo poder-se-ia enumerar 5.315 alternativas – todas, segundo minha concepção, erradas. Depois de exaustivos estudos, foi possível concluir que parte da transcendentalidade do mundo se esconde em uma geladeira. E, se o(a) ilustre leitor(a) me honrar com o prazer de sua companhia, tentarei desvendar essa intrigante e peripatética tese.

Antes, uma pequena digressão. A sociedade moderna discrimina tudo o que é diferente. Ou que não estiver na moda. Não adianta tentar manter idiossincrasias particulares – quando menos se espera aparece um chato e pisa no nosso castelo de areia; e pouco importa se passamos a tarde toda construindo aquela bobagem para tentar impressionar a namorada. Um exemplo clássico, eternamente presente em minha vida, está no tipo de marginalização que sofrem aqueles que ignoram a indústria automobilística. Muitos de meus amigos jamais me perdoaram por não possuir nem mesmo um fusquinha, por ter dificuldades em distinguir uma Kombi de uma Ferrari e por detestar dirigir (certa vez, evidenciando típica falta do que fazer, frequentei uma autoescola). Em outras palavras, essas insignificâncias conseguiram me transformar em um cidadão de segunda classe. Tudo bem, se a questão se resume em discriminar, lamento informar a quem interessar possa que estou em ótima companhia: índios, sem-terras, sem-tetos, não fumantes, negros e outras “minorias” menos cotadas.

Mas, e a geladeira? Onde é que o eletrodoméstico entra nesta história? Calma, já chego lá! A questão é que durante muito tempo não tive refrigerador em casa. Morando sozinho e sem muitas preocupações com as questões domésticas, considerei que era um item completamente dispensável na minha vida. Quando comecei a desorganizar o apartamento em que moro foi necessário decidir se comprava um DVD ou uma geladeira. Sem pensar duas vezes, investi na ampliação de minha cultura cinematográfica, através da tela pequena. Resultado: além de fazer a alegria dos proprietários das locadoras, fui isolado pelos amigos. Amarguei ouvir certas frases: “Como é que vou à tua casa, se nem um cerveja gelada você tem para servir?” E a palavra "gelada" vinha envolta no papel celofane do desprezo. Até o meu filho (na época, com quatro anos), perguntava: “E a geladeira, pai?” Pois é, e a geladeira?

Acontece que certo dia (provavelmente por algum descuido que nunca procurei desfazer) notei que havia uma pequena folga na conta bancária. Sem saber o que fazer com tamanha fortuna, decidi procurar pela famosa geladeira.

Armado de paciência – mas não muita – fui à luta. Primeiro, uma pesquisa de preços. Diferenças astronômicas entre uma loja e outra. O mesmo para as condições de pagamento. Paralelo a isso, aprendi uma lição: não basta ter o dinheiro para poder comprar. Algumas lojas (é possível entender isso?) não possuem estoques – é preciso esperar, no mínimo, uma semana pela entrega!

Ansioso por resolver a questão, optei por fazer negócio com um estabelecimento comercial em que a funcionária (muito ajeitadinha, diga-se de passagem) me prometeu posse imediata do objeto do desejo (neste caso, a geladeira, não a funcionária!). Ou seja, ao final daquela mesma tarde. Além disso, aceitaram parcelar a conta. Foi quase como acertar na loteria. Quase.

Como era meu dia de brincar de pai exemplar, fui buscar o filho no colégio, às cinco horas da tarde. Em seguida, lépidos e faceiros, fomos para casa aguardar a chegada da novidade. Que não chegou. Nem na manhã seguinte. Tampouco recebi algum telefonema explicando a situação.

Furioso, voltei até a loja. Com a cara-de-pau típica dos incompetentes o gerente me informou que haviam vendido duas vezes o mesmo produto! E o premiado, adivinhem quem foi?

Desfizemos o negócio imediatamente. De gorjeta, mandei todo mundo plantar batata no asfalto. Com enxada de borracha. Na verdade, os termos que utilizei foram outros e levemente mais ríspidos. Coisa pouca. Bobagens de quem estava com a cabeça quente.

Procurei outra loja. Dois dias depois. Ótima forma de pagamento, entrega em cinco dias, diferença de preço quase insignificante. Arrisquei.

No dia marcado, fiquei aguardando alguma tragédia. Que não veio. Aliás, nem notícias da geladeira. Será que havia sido enrolado, outra vez? Cheio de medo, fui trabalhar.

Na volta para casa, encontro uma vizinha que me diz que “ela” estava me esperando no corredor do prédio.

− O moço da entrega estava com pressa. Pediu para que eu a recebesse. Será que fiz mal?

Ignorei a pergunta e entrei no prédio. A “coisa” estava lá, agasalhada por uma caixa de papelão. Tive uma crise de paranoia: e se estiver estragada? Ou arranhada? Ou... sei eu lá!

Depois, com o carinho que se oferece a uma namorada, a fiz ultrapassar a porta do apartamento. Na manhã seguinte, já estava incorporada ao meu mundo domesticado. E, por algum estranho motivo que não quero entender, passamos a viver um clima de lua-de-mel. Inclusive porque agora o queijo está mais bem protegido.

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