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sexta-feira, 25 de março de 2011

O BÊBADO E A FILOSOFIA

Na pracinha, em uma dessas manhãs de inverno.

Bêbado como um gambá (se é que os gambás ficam bêbados), o homem atravessou a rua. Estava com a camisa fora das calças. Os sapatos provavelmente haviam sido engraxados pela última vez no século passado.

Parou em frente do monumento em homenagem a um dos próceres do município. Depois de alguns segundos em silêncio, ergueu o olhar até os olhos (!!) da estátua e, com a voz enrolada, falou:

— Você sabe, eu sempre fui sincero, sempre detestei o que é errado. Tenho tentado fazer as coisas certinhas. Todas as coisas certinhas. Isso ninguém pode negar, eu sou pelo certo. Sempre fui. Mas, você tem que entender que, às vezes, a vida não segue a melhor trilha. Raras vezes acontece exatamente o que nós gostaríamos que acontecesse. Na verdade, viver é, quase sempre, uma forma de decepção. É isso aí, gostei, hoje tô meio filósofo, a vida é sinônimo de decepção. Você, eu, o Zé, até o dono do botequim, todos nós precisamos aprender a desistir dos sonhos, embora todos os professores dessa imbecilidade chamada vida gastem litros de saliva para nos ensinar que sem eles, os sonhos, não dá para continuar na luta. Você é testemunha, como eu já te disse, de que eu sempre procurei fazer o melhor. Esse é o meu objetivo de vida. Sempre foi. Mas, que porcaria!, às vezes querer fazer o certo, ou melhor, fazer o certo não é o suficiente. Não é o suficiente. Eu estava ali, naquele boteco, aquele ali, tomando o meu traguinho matinal, aquele indispensável pra calibrar a máquina, quando percebi que toda a minha vida está se perdendo, se perdendo. Fiquei horrorizado. (Aqui, o bêbado fez uma pausa longa. Ficou olhando para a estátua, que pareceu retribuir o olhar – como se não estivesse a entender o que estava acontecendo). Por falar nisso, no horror, alguém já te disse que você tem uma cara de peixe morto? Aposto que não. A hipocrisia é uma doença incurável. Quem é que quer ser sincero, nos dias de hoje? Ninguém. É isso, ninguém mais quer ser honesto. Não tem importância, viver é aprender a nadar nesse mar de indiferenças. Quer saber de uma coisa? Essa conversa está muito chata: vá plantar batata no asfalto, com enxada de borracha! 

Em seguida, depois de cuspir no pedestal da estátua, foi embora.

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