Assim como as pessoas, as casas morrem. Cumprem suas funções e desaparecem de nossas vidas. Sobram as lembranças, as fotografias e alguma coisa imprecisa, talvez história, talvez saudade.
Ao contrário dos seres humanos, ninguém chora pelas casas que desaparecem da paisagem urbana. Há quem julgue que são apenas utilitários, objetos descartáveis — invólucros de nossas intimidades. Paredes, portas e janelas seguem um calendário de perplexidades, um período segmentado da ilusão.
Ao contrário dos seres humanos, ninguém chora pelas casas que desaparecem da paisagem urbana. Há quem julgue que são apenas utilitários, objetos descartáveis — invólucros de nossas intimidades. Paredes, portas e janelas seguem um calendário de perplexidades, um período segmentado da ilusão.
Assim como as pessoas, as casas morrem. E os médicos estão sempre ausentes. Esgotado o existir, nada mais há para se fazer. Mesmo assim, ficarmos sentados, olhando o desmoronar (por desespero ou impotência, ficamos).
Sem poder recorrer às ambulâncias, convênios, planos de saúde, autoridades políticas, sem poder chamar por engenheiros, arquitetos, pedreiros, mestres-de-obras, empreiteiros, a esperança de que possamos salvar a casa condenada escorre pelo vão dos dedos como um punhado de areia ou as pérolas de um colar que arrebentou.
O som das panelas na cozinha, aquelas conversas na sala durante o café da tarde, os retratos na parede, a folhinha amarelada com a estampa do Sagrado Coração de Jesus, a cristaleira com os vidros de compotas, os sonhos que cobriram as noites intermináveis, o amor que rimou tantas vezes com estrelas e paixão — quem nos devolverá esses instantes perdidos?
Em momento impreciso, muito tempo depois, provavelmente por distração, alguém se lembrará das casas mortas. Talvez ao ouvir alguma citação ocasional, um lembra daquele dia? E a imagem retornará intocada, bonita, como se ainda houvesse sangue circulando por suas veias, como se o oxigênio ainda estivesse a lhe soprar, pelos pulmões, a vida. Em seguida, quando entendermos que a vida está envolta por esse turbilhão de perdas que estamos construindo para os nossos filhos, restará o conviver com ruínas e recordações.
As caixas verticais substituem as casas mortas. Semelhantes aos nossos pais e avós, as casas antigas incomodam, atrapalham. Não há mais lugar para essas peças anacrônicas. A modernidade requer substituí-las por algo mais funcional.
Prédios, apartamentos, lojas: paredes separando sentimentos. Desconhecidos e insanos se agrupam em torno da solidão e levantam escudos de proteção: a indiferença. Ninguém conversa com o vizinho, na cerca dos fundos, perto da horta. Todos se encontram no elevador ou na garagem, a face carrancuda, o cumprimento protocolar, o medo de estabelecer algum tipo de intimidade.
Prédios, apartamentos, lojas: paredes separando sentimentos. Desconhecidos e insanos se agrupam em torno da solidão e levantam escudos de proteção: a indiferença. Ninguém conversa com o vizinho, na cerca dos fundos, perto da horta. Todos se encontram no elevador ou na garagem, a face carrancuda, o cumprimento protocolar, o medo de estabelecer algum tipo de intimidade.
Assim como as pessoas, as casas morrem. E, pelo mesmo caminho, segue a utopia. Homens e mulheres algemados em seus relógios, roendo os cadáveres das casas antigas. Cupins pós-modernos acreditando que felicidade é sinônimo de lucro. Nunca se preocuparão com as regras que envolvem o viver em sociedade ou com a aridez das transações financeiras – seus computadores conferem, através do código de barra, os estoques de afeto.
Em dia impreciso e distante, foi a vez da casa amarela. Nenhuma surpresa, apenas mais uma morte anunciada. Os especialistas diagnosticaram um câncer terminal em suas paredes e no telhado. A pintura estava descascada, as janelas de madeira precisavam ser substituídas, os tijolos revelavam as feridas. Ninguém queria a casa amarela. O poder público declarou que não tinha interesse. Nenhuma figura histórica morou na casa amarela.
Diante do inevitável, o sol iluminando a mediocridade, um operário empunhou a marreta e, ao som da força, abriu caminho para uma nova edificação. A casa amarela foi esquartejada. Os entulhos, depois do necessário mise-en-scene, foram espalhados pela cidade, restos de uma vida transformados na poeira do esquecimento. O madeirame, os vidros, as telhas: fragmentos inúteis, lixo.
A casa amarela morreu. O tempo encarregar-se-á de soterrá-la na vala comum das ausências.
Apesar disso, contrariando a lógica, a casa amarela resiste. Quem passar por aquela rua sentirá a sua presença. Mesmo sem estar onde deveria estar, parece que ela, a casa amarela, nos chama para uma conversa, quer trocar segredos, pequenas bobagens, indiscrições só possíveis entre amigos. A casa amarela era alegria no coração.
Assim como as pessoas, as casas morrem.
meus deus dos pergaminhos!!! esse texto é seu Raul? é belíssimo! se me autorizar vou copiar e colar. Rosa Ramos
ResponderExcluirRosa: sinta-se à vontade!
ExcluirRaul que maravilhoso confessionário voce construiu. Ou será uma sessão de terapia? Ou, quem sabe, sejam apenas velhos fantasmas rondando a longa noite? Pouco importa. O que vale mesmo é a belíssima narrativa. Impecável.
ResponderExcluirAh, as casas. Impossível não sentir essas emoções de casas. Mesmo eu, nômade, com parcas e fracas raízes, me arrepio ao pensar nas casas, suas falas, seus fantasmas. Belíssimo texto. Obrigado Raul.
ResponderExcluirTal vez faltem Vangogues da vida na nossas vidas
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