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sexta-feira, 18 de março de 2011

SOLIDÃO URBANA

Naquela tarde ensolarada, dentro do ônibus urbano, condenado a vestir roupa social, Antônio afrouxou a gravata (sonhando com a possibilidade de usar camiseta, bermuda e chinelos no final de semana). Embora o ambiente fosse opressivo (Antônio, dentro do ônibus, sempre se sentia mais apertado que sardinha em lata), aproveitou a oportunidade para filosofar um pouco: fez, para si mesmo, um breve balanço dos malabarismos necessários para driblar as misérias da condição humana.

Essa, digamos, divagação foi interrompida por um alvoroço, lá no fundo da “circular”.

Um rapaz, aproximadamente uns 20 anos, sem qualquer motivo aparente, começou a cantar. A voz era desafinada, alternando momentos de calma e de agitação. Os versos da música eram ininteligíveis. Talvez fosse uma espécie de inglês macarrônico, talvez fossem palavras similares às que escutava, um fio escorria do seu ouvido. Foi isso o que Antônio imaginou estar acontecendo.

A primeira vez que o rapaz cantou, quase todos os passageiros foram tomados por um sentimento de benevolência – a forma com que as pessoas “normais” desculpam os distraídos (evidentemente “aquilo” só podia estar acontecendo por distração).

Na segunda vez, as reações mudaram. O que antes era tolerância se transformou em irritação: várias reclamações foram ouvidas. O cobrador também se somou aos descontentes e fez um comentário, em voz alta, sobre as pessoas que não possuem “desconfiometro”.

O rapaz continuou a cantoria, como se quisesse causar confusão, como se ambicionasse preencher o desconforto. Parecia estar em outra freqüência, em outro mundo – os óculos escuros que usava era um isolante contra o ódio (câncer que estava corroendo as entranhas dos demais passageiros).

Uma moça chegou a diagnosticar:

— Esse cara deve estar com muitos problemas. Uma pessoa, quando faz esse tipo de coisa, só pode estar muito carente, na beira do desespero. 

Uns dez minutos, quando o ônibus chegou ao terminal, o rapaz desembarcou e sumiu no meio da multidão. Antônio, por algum motivo que até hoje ainda não conseguiu entender, passou o resto do dia ouvindo blues.

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