Domingo, seis e meia da manhã. No melhor do sono, senti uma mão batendo no meu ombro.
Simultaneamente, como se fosse o sinal do Armagedon, uma voz insistente:
Simultaneamente, como se fosse o sinal do Armagedon, uma voz insistente:
– Pai, você já acordou? Eu já acordei!
– Ah, filho, me deixe dormir mais um pouquinho, por favor!
Sem esperar pela resposta, virei o corpo para o outro lado, procurando por uma posição melhor. Por um instante, aquela fração de segundo que separa a felicidade do horror, pensei em abraçar um corpo de mulher. Como em todo pesadelo, isso era impossível. Ao meu lado, naquele momento, só existia o vazio e a ausência. Mas isso não era o pior. O menino me convidava a abrir os olhos e encarar as crueldades da vida.
– Pai, você já acordou? Eu já acordei!
– Tá!
– Paiêêêê, já é dia!!! Você precisa levantar!
Armado de toda paciência que consegui reunir, contei até três mil. Depois, compreendi a triste sina: sua majestade, “a rainha do lar”, estava em viagem. O palácio, o cetro e o príncipe herdeiro (das dívidas e das dúvidas familiares) haviam ficado sobre a responsabilidade do bobo da corte. Ou seja, eu. Então, só restava relaxar e..., sei lá, não permitir que o circo pegasse fogo – pelo menos até a volta da ilustre consorte (sim, porque naquele instante não havia a menor dúvida de quem era o “com azar”). A “megera”, antes de ganhar a estrada e o bem-bom, havia me atormentado com mil recomendações, uma lista de cuidados com o filho, verdadeiro massacre em forma de ternura. Só de pensar nisso, e nos incômodos que teria se acontecesse alguma coisa com o menino, entrei em estado de pânico.
– Pai, tô cum fomi!
Dizendo adeus às ilusões, abri os olhos. Em seguida, quase fulminei o menino com uma paternal dose dupla de rancor. Desisti no meio do caminho e, da forma mais teatral possível, arrisquei a última cartada:
– Você não quer deitar um pouquinho com o pai?
O rapazinho, apesar da pouca idade, não caiu no velho truque do seu “velho” e reagiu em grande estilo; ou seja, gritando:
– Tô cum fomi!!
Naquele momento, precisando manter o controle e a razão, senti que nada mais me restava senão amaldiçoar a humanidade (em geral) e os fabricantes de cerveja (em particular). Por um acaso, só por um acaso, não poderia um pobre pai abandonado consumir umas poucas muitas latinhas de cerveja, na noite anterior, enquanto o filho dormia? Desde que não houvesse negligências no trato do pimpolho, nem mesmo a mais ortodoxa das mães poderia dizer que não. O problema é que as noites passam, a ressaca é inexorável e é preciso acordar na manhã seguinte. Frustrado, capitulei:
– Tá certo, filho. Já vou levantar.
Sem saber direito o que fazia, sacudi o esqueleto e, armado de coragem, muita coragem, vesti uma camiseta e uma bermuda. Entre o quarto e o corredor, milhões de bocejos – uns cinco ou seis. Na cozinha, como se fosse um zumbi, não consegui encontrar o material básico para poder calar o menino. Sem fazer a mínima idéia de onde estava “escondida” a mamadeira, abri e fechei todos os armários – diversas vezes! Desolado, sentei na cadeira mais próxima e, depois de mais alguns bocejos, disse:
– Meu filho, estamos em apuros!
O menino, sem entender o que isso significava, se aproximou e beijou o meu rosto. Foi a gota d’água. Então aquele pirralho, que outro dia fora retirado, pela violência de uma cesariana, da barriga de sua mãe (uma bola de carne roxa, pingando sangue), desprezava as trapalhadas de seu pai e, na maior ousadia, com um simples beijo, transforma em amor todas as tempestades da vida?
Com o orgulho de um atleta que cruza a linha de chegada em primeiro lugar, abracei o menino. Ficamos assim unidos uma eternidade (uns dois minutos). Logo depois, levantei-me, abria geladeira e, surpresa!, encontrei o leite. Em cima da mesa estavam o Nescau e a mamadeira. As outras operações (pura alquimia!) foram realizadas no “automático”. Era como se estivesse pisando em nuvens – e estava!
O resto do dia foi ótimo, apesar da programação de televisão, das quatro vezes que assistimos um desenho no vídeo, do almoço desajeitado em uma churrascaria, do sorvete que melou todo o hemisfério sul, do dinheiro gasto com figurinhas, do passeio no parque, das brigas esporádicas e do afeto explícito.
Estávamos construindo uma educação sentimental muito particular, cheia de cumplicidades.
É um belo texto,relato de um pai enfrentando um fim de semana com seu filho,claro que é difícil só as mães para entender melhor os pirralhos,mas o amor superou sua falta de jeito pais desastrado,e pode curtir um belo dia com seu filhote,ate esqueceu a ressaca,parabéns Raul belo texto.
ResponderExcluirObrigado!
ResponderExcluirDe incrível sensibilidade!
ResponderExcluirDe tocante beleza!
Um dom divino a ser propagado, meu amigo!
Esta leitura me fez muito bem!