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terça-feira, 29 de março de 2011

O DIA EM QUE ESTIVE PRÓXIMO DE MEU PAI

Pouco importa se a vida transcorre como um desses filmes ruins que a gente assiste num final de tarde de sábado, por pura inércia, na falta do que fazer. O que vale é aquele conjunto de cenas que batem na porta da memória – muitas vezes desafiando a nossa capacidade de entender as sutis diferenças entre o que existiu e o que gostaríamos que tivesse existido.

Na minha infância, muitos anos atrás, para surpresa geral, meu pai, que era famoso por ser avesso a demonstrações de carinho pelo mundo (em geral) e pelos filhos (em particular), aceitou o convite de meu avô e foi com a família, em férias, para Morrinhos, no coração da Coxilha Rica (interior do município de Lages, SC).

A sua bagagem era composta por uma caixa de cerveja, cinco pacotes (vinte maços cada) de Continental (sem filtro), algumas varas de pesca, diversas garrafas de cachaça e uma infinidade de reclamações – meu pai, ao longo da vida, havia se transformado em um homem carente e com medo. Muito tempo depois descobrimos as razões de sua insegurança – mas, como sempre acontece nesses casos, era tarde demais para que pudéssemos construir uma ponte entre o que havia desmoronado e o que tenuamente nos mantinha ligados (esse conjunto de afetos que os burgueses chamam de família). 

De qualquer forma, aqueles dias no campo tiveram a vantagem de mostrar que ele poderia (se quisesse) estar próximo do nosso mundo: levava os filhos para tomar “camargo”, organizava cavalgadas, contava histórias, se enturmava. Ao entardecer, ajudava os empregados na lida com o gado. Tudo isso, é claro, com certo ar de tédio, entre longas baforadas de cigarro (freqüentemente um acesso na guimba do outro).

Uma noite, acordamos no meio da maior algazarra. Talvez fosse umas quatro ou cinco horas da manhã. Não sei. A velha casa da fazenda, toda de madeira, rangia. Era um tropel sem fim, como se uma boiada estivesse atravessando pelos quartos e salas. Assustados, levantamos da cama e fomos, em grupo, para a cozinha, onde o barulho era maior.

Quando a cena se desenhou nos nossos olhos sonolentos, descobrimos, com a mesma alegria de quem encontrou um tesouro, que meu pai e o capataz estavam bêbados. Corriam para lá e para cá, rindo inocentemente. Por um instante, pareciam ser tão crianças quanto nós. Perseguiam um tatu. Na maior farra, deixavam o animal escapar toda vez que o agarravam. A diversão estava em poder iniciar tudo outra vez. Estavam comemorando uma vitoriosa incursão de caça. Como fidalgos que voltam ao castelo, promoviam uma festa para mostrar o que haviam conquistado.

Meu avô, sem saber se brigava com eles ou se entrava na bagunça, nada fez (exceto balançar a cabeça, incrédulo). Minha avó, muito mais forte e determinada, não deixou a ocasião passar em brancas nuvens e, com um rápido e enérgico protesto pela falta de consideração pelo sossego noturno daquela casa, mostrou que não aprovava aquele tipo de comportamento. Depois, como um gesto de perdão, beijou o rosto suado de meu pai e foi tentar dormir outra vez. Minha mãe nada disse. Ela sabia que seria inútil. Por isso nos conduziu rapidamente para a cama e, com uma violência a que não estávamos acostumados, empurrou-nos para debaixo das cobertas. Esforço em vão, ninguém mais conseguiu pegar no sono. Bem, nós não dormimos – eles, depois de prender o animal dentro de uma caixa, lá na cozinha-de-chão, foram para os respectivos quartos e, sem a menor culpa, sonharam escandalosamente com a felicidade durante umas quinze horas.

Uns dois dias depois, o tatu se transformou no prato principal de um grande almoço – a comida estava ótima, com aquele sabor super-especial que a infância confere ao mundo.

Hoje, depois de todos esses anos, ao voltar o olhar para o passado, fico pensando se é possível acreditar na existência de finais felizes, mesmo para aqueles que não acreditam em finais felizes: ao retornarmos para casa, quando acabaram as férias, já não éramos mais os mesmos, embora o rosto de meu pai estivesse, outra vez, impenetrável e distante de todos nós.

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