Saudade é dor incerta. Basta um descuido e ela aparece. Traiçoeiramente.
Trabalhei com Estevam Borges (1928-1999) por uns cinco anos, lá na Prefeitura.
No meu imaginário, ele sempre aparece sentado, atrás de uma mesa. Algumas vezes, a mesa é de boteco e ele está bebendo cerveja, em uma dessas tardes aborrecidas de sábado. Outras vezes, a mesa é a de trabalho e diante dele estão milhares de pastas de arquivos, revistas, recortes de jornais, livros – tudo espalhado em desorganizada ordem. Em uma mesa menor, ao lado, uma máquina de escrever pré-histórica – talvez aquela onde ele redigia o boletim diário da Comunicação Social (definitivamente o pior serviço da repartição).
Nos momentos de folga, Estevam concedia generosos “dedos de prosa”. Com uma diplomacia muito superior àquela praticada pelo Itamarati, ensinava aos mais jovens alguns truques de sobrevivência na selva do jornalismo.
Uma de nossas conversas recorrentes era sobre a insensatez da programação de filmes, nos canais de televisão. Como naquela época a televisão a cabo não nos era acessível, compartilhávamos a convicção de que a Rede Globo travava uma conspiração contra os cinéfilos em geral e, mais importante, contra nós dois em particular. Bastava olhar a grade de programação nos jornais para confirmar as nossas certezas: em horários “assistíveis” só passava “bomba”; “filmaço” só no meio da madrugada! Para quem precisava “bater o ponto”, cinco vezes por semana, às oito horas da manhã (o nosso caso), era impossível (re)ver As Noites de Cabiria (Federico Fellini, 1957), A Malvada (Joseph Mankiewicz, 1950) ou O Tesouro de Sierra Madre (John Ford, 1948), entre tantas outras preciosidades.
Algum tempo atrás, numa dessas noites intermináveis, a Globo exibiu o melancólico Caro Diário (Nanni Moretti, 1993). Sem sono, cheio de sonhos, assisti ao filme bebendo coca-cola e comendo biscoitos recheados. Foi uma festa, apesar dos farelos espalhados pela cama e pelo chão do quarto.
Quando tudo terminou, lá pelas 04h30 da madrugada, não pude deixar de lembrar do Estevam Borges. E embora eu não acredite nessas coisas, tenho a nítida impressão de que ele também estava assistindo ao filme.
olá Raul !
ResponderExcluirSou filha do Estevam Borges.
Li emocionada o que vc escreveu sobre meu pai ele tinha muitos amigos, um coração bondoso.
Algumas vezes fui "trabalhar" com ele , me recordo da máquina de escrever, pré-histórica (risos).
Compartilho da saudade, ela é imensa, por vezes, cruel. Mas assim como meu pai, creio que ela não será eterna.
Abraços,
Maria Aline Borges Berger
Oi Raul,
ResponderExcluirSou Irinaura,filha de Estevam Borges.Hoje(04/04) li seu post e coincidentemente seria aniversário de meu pai,estaria completando 82 anos de vida.
Fiquei muito feliz pela lembrança e pelas palavras carinhosas com que se referiu à ele.É muito gratificante saber que além de ser lembrado eternamente pela famíla, os amigos também o fazem.
Ele faz uma falta enorme,como pai,como avô mas, acima de tudo como exemplo a ser seguido.
Parafraseando o que disseste acima,também tenho a nítida impressão de que ele está comigo em vários momentos, se não em "espírito",sim em coração.
Abraços,
Irinaura Borges
Raul, eu não conheci Estavam mas voce me pensar que sim. Seja pelo belíssimo texto, seja pelos comoventes testemunhos das filhas, o que percebi é que foi pena não ter essa sorte.
ResponderExcluirAbraços para você e orgulho pelas filhas que Estevam teve...