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quarta-feira, 3 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXIII)




Eu tinha nove ou dez anos. Meu irmão, cinco ou seis. Em razão de um acontecimento inesperado em nossa família, no final dos anos 60, decidiram que nós dois deveríamos dormir na casa do patrão de meu pai. Os dois meninos – que nunca tinham se separado da família – estavam naquela idade que acolhe qualquer fuga da opressão doméstica com rapidez.

Foi apenas uma noite longe de casa. Não aconteceu nada de excepcional – em um sentido geral. Lá pelas sete da noite, nos deram comida e mandaram que fossemos dormir. No quarto (o dono, que era mais velho, tinha sido desalojado pela nossa presença), encontrei uma pilha de gibis. Não eram cinco ou quinze. Nada disso. Na minha compreensão do mundo, naquele instante, a quantidade era inimaginável. Mais de trezentos. Muito mais. Tinha de tudo: Tio Patinhas, Donald, Mickey, Batman, Super-Homem, Homem-Aranha, Popeye, Sobrinhos do Capitão, Luluzinha, Zorro, Fantasma, Flash Gordon, Capitão América, Tarzan, Recruta Zero. E várias revistas do meu personagem Disney favorito: Peninha.

Fiquei assustado. Nunca tinha visto tantos gibis juntos. Nem na banca de revistas a variedade era tão grande. Na nossa família, classe média baixa, quatro filhos, nunca sobrava dinheiro para comprar esse tipo de diversão. Em períodos de fartura, podia-se, no máximo, ir ao cinema. O usual era emprestar as revistas em quadrinhos dos amigos. Mas essa história de ficar devendo favores sempre se mostra problemática, em algum instante a cobrança aparece e nunca está revestida de alegria. 


Meu irmão, cansado, dormiu rapidamente. Eu, ao contrário, estava desperto. Com medo de mexer no que não me pertencia, fiquei olhando para aquele tesouro durante uma eternidade. Depois de muito relutar, venci a timidez, sai do quarto e solicitei permissão, ao primeiro adulto que encontrei, para ler um daqueles gibis. Expliquei que estava sem sono e que talvez assim conseguisse dormir mais fácil.

Fique à vontade, foi o que ouvi. Voltei ao quarto e... Quase passei a noite em claro! Queria aproveitar ao máximo aquela oportunidade mágica. Li todas as revistas que me foi possível. Não sei quais, nem quantas. Cada uma mais divertida do que a outra.

Em algum momento, não sei exatamente quando, o sono venceu a luta. Dormi com a luz acessa – que talvez alguém tenha apagado durante a noite. Quando nos acordaram, lá pelas oito da manhã, um dos gibis ainda estava preso na minha mão.

Tive vontade de chorar. Não me importei em ter que voltar para casa. Naquele tempo, já tinha consciência de que a família é uma cicatriz com que temos que conviver. O que me entristeceu foi não poder levar as revistas em quadrinhos.

Foi uma experiência única. Nunca mais voltamos àquela casa.     

2 comentários:

  1. Quando conheci o Peninha, criei um time de futebol de botão que imaginava ter uma camisa como a desse pato... milhares de anos antes de conhecer o time de Criciúma

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