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sábado, 27 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCVII)


                                              Nereu de Lima Goss e Estevam Borges 

Ele foi um dos jurados do concurso literário. Usava um casaco xadrez e cheirava a cerveja. Embora sua voz tropeçasse nas palavras, a poesia o acompanhava em exercício de linguagem límpida, sem prejuízo do que queria dizer para aqueles adolescentes entediados e que pouco ou nada entenderam daquilo tudo.    

Centenas de garrafas de “pão líquido” depois – quando me tornei amigo de Nereu de Lima Goss (1924-2004) –, disse para ele o quanto tinha ficado muito impressionado com aquele dia. Ele fez de conta de que isso não era importante, bebeu um gole de cerveja, resmungou alguma coisa inaudível, e mudou de assunto.

Funcionário público municipal, desenhista habilidoso, poeta sem sequer ter publicado um verso, aluno da primeira turma do Colégio Diocesano (hoje Bom Jesus), crítico de artes plásticas, cinema e literatura – são muitas as suas facetas.

Em algum momento, atendendo pedidos de Salim Miguel e Guido Wilmar Sassi, colaborou com a Revista Sul. Escreveu um artigo sobre Walt Disney e publicou alguns bico-de-pena como ilustração de artigos alheios. Não teria feito isso por livre e espontânea vontade. Não era um homem de vaidades, embora tivesse muitos talentos.

Dono de um currículo acadêmico invejável, jamais conseguiu se graduar. Os dois anos de engenharia civil (em Porto Alegre) se somaram com um ano de ciências sociais e oito de direito (foi jubilado quando tinha quase 70 anos). A ausência de diploma não o impediu de saber distinguir o importante do supérfluo, o talento da mediocridade.

Lúcido – como só é possível acontecer com aqueles que não se deixam arrastar pelo vendaval da loucura – preferia o lúdico à sobriedade. Invariavelmente, tinha uma piada pronta para ser disparada na direção dos tolos – era o seu escudo contra um mundo hostil.

Nereu foi o guru de uma geração de escritores e artistas plásticos. Nunca ensinou teoria literária, métrica poética ou truques de construção do discurso narrativo. Também não contestou erros de perspectiva, de proporção ou de tonalidades nas escolhas cromáticas. Detestava exercer habilidades professorais. Era contra juízos de valor estético. Acreditava que há espaço para todas as manifestações artísticas. Por isso, nunca recusava estar na companhia dos mais jovens, em mesa de bar, alternando copos de cerveja e comentários esparsos. Às vezes citava um ou outro artista de sua estimação. Isso acontecia mais para ilustrar alguma ideia do que para sugerir caminhos. Ouvia os disparates da juventude com estoicismo e, mesmo nos casos mais pavorosos, encontrava uma palavra de incentivo.

Das muitas histórias que protagonizou, escolho duas. Não porque são as melhores ou as minhas preferidas, mas porque mostram a sua expertise na arte de fazer trocadilhos.

Aconteceu nos anos 50, no aniversário de seu grande amigo Edézio Nery Caon. Morando em Porto Alegre e precisando enfrentar a eterna falta de dinheiro, enviou um telegrama com o seguinte texto: Felicidades aniversário pt Amigo e telegrama caríssimos pt.

Durante o curso de direito, em uma palestra sobre o alcoolismo, parabenizou o orador dizendo que a cachaça precisava ser (com)batida... de limão ou de maracujá.




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