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segunda-feira, 8 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXVIII)


Menina na janela. Salvador Dali, 1925.

Gosto muito de janelas. Isso não significa que desgosto de portas, corredores, quartos, sacadas, sótãos e porões. Tenho apreço por tudo o que existe dentro desse labirinto mítico que, dependendo do grau de carência (afetiva, sexual), uns chamam de casa, outros de útero.

Alguns anos atrás, escrevendo sobre a literatura de Márcio Camargo Costa, arrisquei um conceito. Provavelmente há um dedo (uma mão, um braço) do Gaston Bachelard nesse texto, mas... quem está livre das influências?    

(...) uma das primeiras ações matutinas, no interior do Planalto Catarinense, é a de rasgar as paredes, criar uma brecha, ou, dito de outra forma, esta mais civilizada, abrir uma janela. Fiat lux. O caboclo sabe que é na luz que se encontram as possibilidades da vida. Mesmo que seja para somente ver a chuva ou o céu plúmbeo, janelas são abertas. Janelas são passaportes da alma.

Haverá quem pergunte: janelas? Não seria melhor, mais prático, abrir portas? Talvez, talvez. Mas há diferenças fundamentais entre portas e janelas. E não são apenas de tamanho ou disposição espacial. Portas foram feitas para serem ultrapassadas. Portas demarcam a existência de uma linha imaginária que divide os espaços interno e externo, o dentro e o fora. Portas, mesmo sem poder impedir a existência das ambiguidades, efetuam um corte racional entre algumas das partes que constituem uma casa, segmentando a sala e a varanda, a cozinha e o quintal. Janelas, não. Janelas são o oposto: trazem parte do que está fora para dentro e levam muito pouco do que está dentro para fora. Janelas querem o mundo dentro de casa – com a vantagem de usar cortinas contra o supérfluo, o excessivo, o descabido, a ausência de prazer. Com as janelas podemos perceber um hibridismo inconsútil e que resulta no absurdo gozoso de tentar reunir duas coisas e aproveitar o que há de melhor entre elas. Janelas filtram os acontecimentos que penetram no interior da casa, ao mesmo tempo em que hierarquizam o transito de informações e influências. (Anuário de Literatura nº 10. Florianópolis: UFSC/CPGL, 2002. p. 136-137).


Manhã em Cape Cod. Edward Hopper, 1950

O universo se divide em mil partes e todas, de uma maneira ou de outra, são importantes, mas é na janela, nesses dias de quarentena (e frio e chuva), que se localiza o meu centro do mundo. É desse posto de observação que vejo os carros deslizando pelo asfalto, o nível d’água do rio Carahá, os atletas amadores, o rapaz que faz malabarismos na sinaleira, as pessoas que caminham pela avenida.

Sou um voyeur imóvel. Alguém que vê os acontecimentos, mas que não se aproxima da ação. Olhando para fora do apartamento, não tenho esperança de testemunhar a aterrizagem de disco voador ou o voo de algum querubim (podem ser a mesma coisa). O máximo que presenciei, nesses tempos pandêmicos, foi uns três ou quatro acidentes de automóvel, lá na ponte. Entre mortos e feridos, todos chamaram a perícia policial – o patrimônio sempre grita mais alto.

As janelas são extensões do olhar. Também são filtros para o espaço permitido ao observador. Nesse movimento de sístole e diástole, o ficcional se apresenta como expansão e invenção.   

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