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terça-feira, 9 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXIX)




Uma manhã normal. Acordei cedo, oito da manhã, liguei a televisão e fiquei vendo um pouco da contagem diária dos mortos, a estatística substituindo o luto por aqueles que deixaram de existir. Levantei. Conectei o celular na tomada. Carregar a bateria. Na cozinha, um desalento. A pilha de louças sujas exigindo providências. Com um pedaço de pão em uma das mãos e o copo de suco na outra, não encontrei rota de fuga. O que não tem conserto, consertado está, dizia minha avó. Terminei o “café da manhã”, arregacei as mangas e comecei a lavar pratos, copos e talheres. Depois de dois dias sem executar essa tarefa doméstica, não economizei esforços para eliminar gordura, grãos de arroz (que desceram vertiginosamente pelo ralo) e outros restos de comida. Tocou o telefone. No intervalo entre enxugar as mãos e ir até o quarto, a ligação se desfez. Voltei. Com um prato na mão, disse para mim mesmo que preciso ser mais organizado, não deixar a sujeira acumular na pia. Em seguida, completei: crie jeito, Raul, não minta assim, todo mundo sabe que você vai repetir essa promessa amanhã e depois de amanhã e depois. Desmascarado (um palavra estranha para esses dias de pandemia!), dei a mão à palmatória e menti outra vez: não vou mais fazer isso. Tocou o telefone. Repetindo o desacerto, não consegui chegar a tempo de impedir que a ligação fosse interrompida. Trouxe o telefone comigo. Acessei o YouTube, um desses canais de soft jazz. Aumentei o volume. Terminada a tarefa primeira, fui ao escritório e abri cortinas e janelas. Depois de uma noite de chuva (e frio), a luminosidade e a brisa foram recebidas com alegria. Percebi que passar uma vassoura no chão era uma necessidade urgente. Sem muita vontade, fiz o que deveria ser feito, lamentando não ter um tapete para esconder as sujeiras debaixo. Tocou o telefone, desta vez o fixo. Atendi com voz de tédio, provavelmente algum telemarketing a querer me vender algo que não quero comprar. Não era. Estavam pedindo doação para obra de caridade. Concordei com uma pequena quantia. Alguém virá buscar em, no máximo, dois dias. Desço até o hall do prédio, chegou um pacote com livros. Volto para dentro do apartamento, desembrulho os volumes, sou contaminado por uma espécie de felicidade passageira (clandestina, clariceana), mais dois companheiros a se somar nessas conversas sem fim que mantenho com a literatura. No banheiro, lavo as mãos – reflexo inevitável da obsessão higienista. Faço rápida avaliação das atividades diárias e concluo que não há nada muito urgente para resolver. Vou tomar banho. Valorizo a temperatura da água, o sabonete com aroma de limão siciliano e a toalha felpuda. São elementos indispensáveis para manter a (minha) qualidade de vida. Sim, antes que alguém diga alguma coisa de que não vou gostar, estou ciente de que sou burguês. Pequeno. Minúsculo. Há momentos em que é difícil escapar dessa armadilha que diz que o conforto nos fará mais sensíveis às causas humanas. A felicidade é uma arma quente (happiness is a warm gun) cantava Belchior, entrecruzando diálogos com o passado. Na frente do computador, acesso o Facebook e felicito os aniversariantes do dia. Dou “like” para algumas postagens, compartilho algumas charges, agradeço o envio dos livros. Peço o almoço – pelo telefone. Escrevo um pouco. Durante a tarde, continuarei assistindo o curso de política da Unicamp e talvez veja algum filme em DVD. Nos intervalos, lerei um pouco. Amanhã há de ser / um novo dia.



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