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quinta-feira, 4 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXIV)




Em tempos de isolamento social, talvez a solução para os meus problemas econômicos esteja em escrever um livro de autoajuda. Tenho pensado no assunto. Seria ótimo se se tornasse um besta-seller – principalmente porque a gerente da minha conta bancária deixaria de me sugerir empréstimos.

Além da questão financeira (que é super-hiper-mega-ultra importante), creio que o meu texto poderia (pode, poderá) ajudar aqueles que estão com dificuldades para administrar a vida doméstica em tempos de pandemia, ações criminosas do Estado e duas ausências cruciais para conservar a saúde mental: novelas e futebol.

Sobre esse último item, que atinge dez entre dez estrelas de cinema, digo, dez entre dez torcedores, a depressão está se tornando um caso digno do divã do doutor Sigmundinho, aquele que explicou as diferenças básicas entre as fases oral e anal na infância. Flamenguistas, corintianos e gremistas (além dos demais aficionados) estão próximos do colapso nervoso – uma saudade sem tamanho de ver os corpos suados, camisetas molhadas, o ballet encenado no tapete verde do estádio e a catarse sexual do gol. A ausência de testosterona, em síntese, está fazendo mal para esse grupo de machos-alfa.

A suspensão provisória das novelas resulta em síndrome de abstinência. Algumas pessoas não conseguem viver sem uma ração diária de alienação. Após o choque de realidade promovido pelos jornais televisivos, com notícias sobre os avanços do vírus e as trapalhadas governamentais, nenhuma alma seráfica se satisfaz com as reprises. As noites ficam mais longas e os conflitos familiares que estavam adormecidos (aparentemente para todo o sempre) saem do armário e, com a mesma voracidade dos zumbis, começam a atormentar a vida domesticada. Nada é mais difícil do que conviver com aqueles que amamos.



O catatau que estou planejando (no mínimo 500 páginas) terá esse perfil de personagem como público-alvo. Quer dizer, outros também serão contemplados (só ainda não sei quais). O ideal é atingir todas as faixas (sociais, etárias e alcoólicas) que estão em dificuldades, mas usarei exemplos localizados, gente como a gente, porque (sempre pensando nas vendas) é necessário mostrar empatia com os problemas alheios. Não terei escrúpulos em imitar aqueles volumes que abarrotam as livrarias de aeroporto.

O livro será dividido em vários tópicos, cada um com epígrafe bacaninha, escrita em algum idioma desconhecido (aramaico, sânscrito, português). Erudição é tudo de bom!  

Por enquanto, tenho três capítulos em mente: resiliência, reinvenção e fôlego. Mais do que palavras-chaves, esses conceitos estão relacionados com a mesmerização dos sentimentos, uma forma de convite para que o leitor embarque no Titanic – primeira classe – que o levará para Shangri-lá.

Está tudo conectado. Resiliência é uma daquelas palavras que ninguém sabe qual é a exata serventia. Entre suportar ataques físicos e segurar o choro no momento da desilusão amorosa, vale tudo. Somos todos camaleônicos, por isso a reinvenção está na moda, instante mágico em que o velho (fingindo que é novo) reaparece em uma embalagem bem bonitinha. Por fim, ninguém quer ser acusado de ter pouco fôlego quando muitas pessoas estão tendo problemas respiratórios. 

Sem a canalhice, o sucesso fica mais difícil. Só me falta escrever o livro. Aguardem!

2 comentários:

  1. EStamos com as mãos prontas para aplaudir, especialmente a epígrafe em sânscrito! Gosto de seu DIÁRIO DA QUARENTENA! Beijos

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