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domingo, 7 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXVII)




Alguns domingos são parecidos com solos de saxofone (ou trompete) – começam baixinho e, na medida em que vão ganhando corpo, contaminam o ambiente com a tristeza. Assustador.

O temor aumenta quando se percebe que a pandemia transformou quase todos os dias em uma espécie de fim de semana perpétuo. Depois de cerca de quatro meses de quarentena, o tédio começa a adquirir características de doença. E contra essa metamorfose também não existe vacina.

Gaston Bachelard imaginou que a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Mas, certamente, não aprisionou os moradores no limbo, lugar intermediário entre o céu e o inferno. Ao contrário, para o filósofo francês as relações entre a habitação e o habitante são de benefício mútuo.  

Tenho amigos e conhecidos que (emocionalmente) não suportam as restrições impostas pelo Covid-19. O que lhes causa medo não é a enfermidade, é a loucura. Por isso, estão procurando motivos para sair às ruas – nem que seja apenas por uma ou duas horas. Tomar cerveja, ver outras pessoas, levar o cachorro para passear, fazer exercícios físicos (caminhar, correr, andar de bicicleta), as desculpas são inúmeras. Fico com inveja desse tipo de disposição, mas me detenho. Não quero recitar no dia de amanhã alguns versos de Carlos Drummond de Andrade: Meu Deus por que me abandonaste / Se sabias que eu não era Deus / Se sabias que eu era fraco.

Evidentemente (por maiores que sejam os esforços), tenho dificuldades para interpretar o ermitão. Não é o meu personagem favorito. Ficar em casa por vontade própria é uma coisa, estar preso é outra. Vou ao supermercado, ao banco, à padaria, à farmácia. Na sexta-feira precisei ir até a prefeitura. Talvez tenha que voltar lá amanhã. A vantagem de morar em cidade de médio porte é que tudo está localizado relativamente perto. Cumpro essas missões com rapidez, com inquietação.



Não posso evitar a presença de outro sentimento: a paranoia. A ideia de conspiração se exprime naturalmente na imagem do vírus implacável, insidioso, infinitamente paciente, informa Susan Sontag. Nessa luta sem quartel, nenhuma precaução pode ser desprezada. O inimigo usa métodos que não são fáceis de ser detectados. A salvação exige um novo ângulo de abordagem: a esterilidade (lavar as mãos, usar álcool gel e máscaras).

A doença como metáfora. O jargão bélico como exercício de linguagem. Faltam palavras educadas para exprimir o horror. Para Susan Sontag, uma doença largamente considerada como sinônimo de morte é tida como algo que se deve esconder. E o mais depressa possível, acrescento.

A necropolítica em forma de estatística. As maneiras de matar não variam muito. No caso particular dos massacres, corpos sem vida são rapidamente reduzidos à condição de simples esqueletos, como lembra Achille Mbembe – que evitou dizer que o Estado costuma substituir a vida e a morte por números e gráficos.  

Com o passar das horas, o domingo vai evanescendo. O solo de sax (ou de trompete) também fica mais fraco. O fim de tarde, acompanhado pelo silêncio, começa a se instalar. Na segunda-feira teremos outro domingo.  

Um comentário:

  1. Adoro minha casa. Estranho , mas não tenho saudade da rua. Gosto do meu canto! Tenho saudades das conversas, dos encontros com as crianças, das reuniões com pessoas inteligentes, das festas escolares com os netos.
    Sair a revelia não me agrada.

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