Comprei uvas. Graúdas. Enchi uma
travessa de vidro com água e deixei os cachos de molho durante um dia e meio. Espero
que tenha sido suficiente para limpar os grãos e afogar o Covid-19.
Trouxe para casa uma sacola cheia de
frutas. Peras, bananas, laranjas e meia dúzia de uma prima estranha das
bergamotas. Estão todas lá na fruteira, devidamente higienizadas. Na pior das
hipóteses, podem servir para que, usando dos talentos que não tenho, invente
algo parecido com uma natureza-morta. Antes de mostrar ao mundo minhas
obras-primas no campo das artes plásticas, preciso de umas aulas de desenho. Mas,
como dizia um conhecido da família, o que vale é a intenção. Boas intenções não
me faltam. As más – lamento informar, também tenho em quantidade.
Frutas sempre estiveram presentes na
minha família. Mas, ao contrário de meus irmãos, que gostam de quase todas, tenho
várias restrições. Sou o que eles chamam de enjoado. Sempre fui. É uma
qualidade. Acredito nisso, mesmo que meio mundo discorde.
Detesto caqui, abacate, maracujá, açaí,
mamão, melão, manga. Sabor, textura, consistência – são inúmeros os motivos
para essas restrições. Em compensação, adoro cereja, framboesa, mirtilo,
groselha, amora, morango, pêssego, jabuticaba, acerola, kiwi, cupuaçu, damasco,
tangerina, figo, goiaba. Na lista das preferencias maiores, sorvete de cupuaçu
e doces árabes com damasco são degraus na escada que leva ao paraíso. E doce de
gila e sorvete de pistache, obviamente, mas esses dois são hour concours.
Na propriedade de meus avós, lá em Morrinhos, muitas árvores frutíferas: parreira, pessegueiro, macieira, pereira,
goiabeira... Não me lembro de todas. Em época de colheita, a diversão se fazia
presente, a camisa suja com o caldo das frutas, o olhar de reprimenda de quem
tinha que lavar a roupa. Ah, tinha um butiazeiro enorme. Costumávamos abrir as
castanhas com pancadas (pedra ou martelo).
Comi um pouco das uvas depois do almoço, lá na sacada. O vento estava avisando que o inverno começa no próximo
sábado. Não sei se foram miragens produzidas pela luz fria do sol, fragmentos
da infância atravessaram meu olhar. Senti saudades de um tempo que foi doce e azedo
– assim como as frutas, o humor familiar era sazonal. Prefiro deixar esse
sentimento proustiano de lado, frutas não são madeleines.
Não posso mais cheirar as frutas no supermercado.
Esse pequeno prazer está interdito. Há algo no ar além dos aviões de carreira,
como dizia o Barão de Itararé, se referindo à situação política no governo
getulista. Cerca de 80 anos se passaram e a frase voltou a ter importância. Os
profetas são atemporais.
Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, o Barão de Itararé |
Além da pandemia, muitas ameaças à democracia brasileira. Depois de uma safra eleitoral ruim, precisamos descascar o abacaxi. Alguns pedaços dessa fruta amarga estão causando doenças mais danosas do que o vírus que assola o mundo. Falta doçura.
Infelizmente, como lembrava o Barão de
Itararé (outra vez): de onde menos se espera, daí é que não sai nada. As
frutas apodreceram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário