Os homens, incidentemente, se dividem também em
duas categorias: os que são e os que não são de canivete.
(Fernando Sabino)
Perdi o Victorinox no início do século. O meu nome estava gravado no dorso vermelho. Quase comprei outro – várias vezes. Em algumas lojas de importados (Florianópolis e Joinville), pedi para ver o canivete. Durante alguns minutos manipulei réplicas daquele que desapareceu. Perguntei pelo preço. Não era caro, nem barato. No entanto, lutando contra todas as forças do universo, resisti. Sou um homem sem canivete.
Aconteceu assim. Fui a São Paulo. O canivete estava unido ao molho de chaves. Na ida, nenhum problema. Na volta, a Polícia Federal imaginou que eu poderia praticar alguma ação terrorista. Os protocolos de segurança depois de 11 de setembro de 2001 ficaram mais paranoicos. O voo estava quase saindo, não tive tempo para encontrar alternativa. Vão-se os anéis, ficam os dedos.
Para ser bem sincero, o canivete não era muito utilizado. Sequer lembro-me de ter descascado laranja com ele. Como não sou da turma do cigarro de palha, também não piquei fumo-de-corda. Aliás, nem fumante sou. Apontar lápis é outra atividade que não executei. Escrevo a caneta ou no computador. Então, para que precisava do canivete?
Para lembrar. Era a recordação física de um período da vida em que imaginei que a felicidade seria eterna. Ver o aço da lâmina brilhando tinha como significado principal impedir que o passado fosse tratado como algo descartável ou substituível. Com o poder simbólico que atribuímos às relíquias, sentir o seu peso nas mãos ou no bolso equivalia a um ritual de celebração da memória.
A ausência, mais do que assumir a forma de luto, amplia a frustração. É a potência da descontinuidade, o império da interrupção. De repente, sem que fosse permitido escolher por manter ou apagar o registro de algo que foi importante, o objeto que servia de ponte entre o presente e o passado deixou de existir.
Em algum momento impreciso a névoa do esquecimento encobrirá o percurso. Será como se o canivete nunca tivesse existido. E todas as coisas que a ele estão relacionadas também desaparecerão na bruma.
Antes cair
das nuvens, que do terceiro andar, observou o cínico Machado de Assis,
fingindo não compreender a intensidade de alguns sentimentos. Renato Russo foi
mais cruel: (...) a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre
/ Sem saber / Que o pra sempre / Sempre acaba!
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