Algo raro aconteceu na noite passada. Acordei
durante a madrugada. Perdi o sono. Ou me perdi do sono. Tanto faz. Com preguiça
de levantar e acionar o interruptor, preferi usar o controle remoto e ligar a
televisão. Estava passando, na Globo, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Dir. Daniel Ribeiro,
2014), filme nacional relativamente conhecido.
Nestes tempos turbulentos em que estamos
vivendo, onde o moralismo tenta castrar qualquer atividade um pouco mais,
digamos, progressista, cabe um comentário sobre esse interessante fenômeno.
Exibir um filme que trata de três temas de exclusão (deficiência física, bullying
e a descoberta da homossexualidade) em horário que se caracteriza por enlatados
de terceira classe, assinala que há qualquer coisa no ar, além dos aviões de
carreira, como perguntaria o Barão de Itararé? Ou foi apenas para cumprir a cota
de filmes nacionais? Ou, ainda, trata-se de uma manifestação do acaso?
Somente o responsável pela programação
de filmes da emissora pode responder a essas perguntas. Obviamente, isso não
impede as teses conspiratórias e outras paranoias. Quem olha a lista de filmes
exibidos na última semana, no mesmo horário, percebe que o filme exibido na
terça-feira é um estranho no ninho.
Essa percepção me lembrou que, nos anos 90, fui colega de repartição do Mestre Estevan Borges (1928-1999),
fantástico jornalista e um apaixonado por cinema. Todos os dias ele consultava
a programação das emissoras de televisão, publicada nos jornais. Muitas vezes o
vi reclamar sobre o horário dos filmes. Dizia que o mundo estava mergulhando na
ignorância, pois os filmes mais interessantes estavam sendo exibidos no meio da
madrugada, em horário proibitivo para qualquer pessoa que precisasse estar no
trabalho às oito horas da manhã. Era o caso dele (o meu horário era mais
flexível).
Sugeri mandarmos carta para o Paulo Perdigão
(1939-2006), que era o programador de filmes da Rede Globo naquela época. Por
algum motivo que não consigo lembrar, nunca enviamos a reclamação. Isso não
evitou que continuássemos a protestar contra a impossibilidade de ver, mais uma
vez, entre outros, O Tesouro de Sierra Maestra (Dir. John Ford, 1948), A
Malvada (Dir. Joseph Mankiewicz, 1950) ou A Montanha dos Sete Abutres (Dir.
Billy Wilder, 1951).
De lá para cá, mudou muito a programação
das televisões e o cinema. E, que me perdoem os fãs dos efeitos especiais, foi
para pior. O chroma key criou uma nova forma de miragem e dispensou o poder
sedutor da interpretação. Dispensou a atuação dramática. Basta fazer um pouco
mímica e a mesa de edição resolve todo o resto. Simultaneamente, a televisão adotou um projeto de distanciamento cultural, onde a violência (simbólica, imaginária e real) ganhou espaço.
Retomando Hoje Eu Quero Voltar
Sozinho, que é derivado do curta-metragem Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho (Dir.
Daniel Ribeiro, 2010), pode-se dizer que a sua qualidade mais destacada está em
não pretender iniciar uma discussão sobre os temas que aborda. Sequer propõe uma
posição estética no cenário cinematográfico brasileiro (campo/contracampo, esquematismo no desenvolvimento dos diálogos, pouca invenção). No máximo, além do
excelente trabalho de ator dos dois rapazes (Ghilherme Lobo e Fabio Audi), o filme projeta um cenário intimista de alguns problemas que são (de certa forma) universais.
Todos os momentos importantes do filme se afastam da ruptura. A briga com os
pais resulta em reconciliação. Os desacertos com a amiga são ultrapassados. O
namoro dos meninos não está acompanhado de crises de identidade. Esse
acomodamento das crises resulta em um filme simpático e que aponta para possibilidades
de felicidade. Em outras palavras, se não fosse pelo moralismo
judaico-cristão-ocidental, poderia passar na sessão da tarde e ninguém ficaria
escandalizado. Mas,...
Lindo filme!Daqueles que nos pegam de surpresa.
ResponderExcluirO texto também está maravilhoso!
Abraço!